Cristine 14/05/2019
Infâmia: A falta de perguntas, porque todos nós deixamos perguntas por fazer, seja por conveniência... ou por medo de sairmos de nossa zona de conforto.
Infâmia: sf. 1. Má fama. 2. Perda de boa fama. 3. Ignomínia. 4. Qualidade de, ou ato infame. Desses quatro significados (que praticamente falam a mesma coisa com palavras diferente) o que mais expressa os acontecimentos do livro é o segundo.
O título se vale de uma palavra portentosa e espantosa, e tem a ver com dois crimes morais: um se projeta no passado da família do embaixador aposentado Manuel Serafim Soares de Vilhena, e transcorre na esfera privada (um marido autoritário e violento, também diplomata, levara a filha do protagonista ao suicídio); o outro acontece no presente, a campanha de desmoralização do modesto funcionário público, Custódio Fialho Borges Filho, o qual fora a fonte de uma reportagem investigativa sobre corrupção, desvio de verbas e superfaturamento nas compras do seu departamento. A própria imprensa que utilizará suas informações começa a divulgar inverdades que o comprometem com o “esquema”, alvo de um desses corriqueiros escândalos que acompanhamos nos jornais e pela tevê. Sua vida é destruída.
Quero deixar uma coisa explícita sobre a minha satisfação com essa leitura pois Ana Maria Machado sambou, sapateou, pisoteou e fez moonwalker na cara da sociedade com esse livro, o tema principal abordado na história é a distorção (ou omissão) da verdade:
"Cada vez mais, percebia que nunca o engano estivera tão a solta, jamais fora tão fácil o logro coletivo em tão larga escala. O contrário do famoso axioma: agora poucos enganavam a muitos durante o tempo todo."
Eu particularmente já tinha parado para pensar nas respectivas primeiras-damas,e talvez povoou meu imaginário a ideia de uma vida boa, sem preocupações financeiras, um pouco de glamour. Ana Maria nos traz o outro lado, o casamento de aparências, o rigor do comportamento esperado, as regras que se aplicam ao marido e à mulher, bem diferentes, a opressão sofrida pela filha do embaixador, também ela casada com um embaixador, a depressão subsequente, a manipulação do marido, sua crueldade, a covardia de ambos, o medo da mulher, a falta de visão de alternativas, a opção derradeira. Muita sujeira por baixo do tapete.
Essa possibilidade de ter uma ótica não imaginada é que nos engrandece e flexibiliza, que nos minimiza a chance de cometer infâmias. Clarice Lispector viveu esta situação como esposa de diplomata e nos deixou registrado sua angústia e desamparo.
Quanto à sujeira por baixo do tapete, a sensação é de uma terrível impotência. O verso que traduz o sentimento é do Quintana: "há tanta coisa para denunciar, mas a quem?".
Durante a leitura do livro, fiquei lembrando também da estratégia do Amós Oz: perceber a normalidade em meio à anormalidade, escrever sobre pessoas comuns e seu cotidiano em situações limites para que a poesia e a arte prevaleçam, para não dar vitória à opressão. Como é difícil adotar este olhar que busca a luz...
O livro ratifica minha opinião de que não devemos compactuar com nada que nos traga infelicidade, não esconder os problemas, discuti-los, tentar uma solução que não maltrate o coração, mas se não der, partir para outra, sem a preocupação paralisante do que os outros vão pensar. Isso é um atraso que pode ser fatal e o tempo, sabemos, não para.