Carla.Parreira 14/10/2023
O Jesus que eu nunca conheci
O autor mostra que, de acordo com Jesus na fala seguinte, o que penso dele e como reajo vai determinar meu destino por toda a eternidade: ?Digo-vos que todo aquele que me confessar diante dos homens também o Filho do homem o confessará diante dos anjos de Deus?, ele disse. Um dia os milagres pareciam fluir de Jesus; no dia seguinte seu poder ficava bloqueado pela falta de fé das pessoas. Um dia falava em pormenores sobre a segunda vinda; no outro, não sabia o dia nem a hora. Fugiu de ser preso uma vez e marchou inexoravelmente rumo à prisão em outra. Falou eloqüentemente sobre a pacificação, e depois disse a seus discípulos que procurassem espadas. Suas reivindicações extravagantes colocaram-no no centro da controvérsia, mas, quando fazia alguma coisa realmente miraculosa, procurava ocultá-lo.
Jesus deu-nos exemplo de humildade: Ele ?a si mesmo se esvaziou [...] humilhou-se a si mesmo?, disse o apóstolo Paulo de forma mais prosaica. Até a língua materna da família trazia lembranças de seu estado oprimido: Jesus falava aramaico, linguagem comercial intimamente relacionada com o árabe, lembrete agudo da sujeição dos judeus aos impérios estrangeiros. E foi vivendo essa opressão que ele se voltou para os pobres, doentes, desamparados e fadigados. Mas Jesus era acessível a todos indistintamente. A coragem de Jesus diante de todos os detalhes vivenciados foi maior do que a capacidade de compreensão dos próprios apóstolos por Ele escolhidos. Começando com a tentação, Jesus mostrou relutância em torcer as regras da terra. Pregado na cruz, Jesus ouviria a última tentação repetida como um motejo.
Um criminoso zombou: ?Se tu és o Cristo, salva-te a ti mesmo e a nós!?. Os espectadores retomaram o grito: ?Desça agora da cruz, e creremos nele [...] Livre-o agora, se de fato o ama?.
Mas não houve livramento, nem milagre, nem alívio, nem um caminho sem dor. Para Jesus salvar os outros, bastante simples, não poderia salvar-se a si mesmo. Rejeitando as três tentações, orgulho, vaidade e egoísmo, Jesus perdeu o direito aos três grandes poderes que estavam à sua disposição: milagre, mistério e autoridade. A tentação no deserto revela uma profunda diferença entre o poder de Deus e o poder de Satanás. Satanás tem o poder de coagir, de estontear, de forçar a obediência, de destruir. A bondade não pode ser imposta externamente, do alto para baixo; tem de crescer internamente, de baixo para cima.
Em suma, Jesus demonstrou um incrível respeito pela liberdade humana. Três vezes, pelo menos, ele chorou na frente dos seus discípulos. Não ocultou seus temores nem hesitou em pedir ajuda: ?A minha alma está cheia de tristeza até a morte?, ele lhes disse no Getsêmani, ?ficai aqui e velai comigo?. Quantos líderes fortes de hoje se mostrariam tão vulneráveis? Ao contrário da maior parte das pessoas, Jesus gostava de elogiar os outros. Quando operava um milagre, não raro desviava o crédito de volta para o contemplado: ?A tua fé te salvou?.
Quando uma mulher assustada lhe ofereceu um extravagante ato de devoção, Jesus defendeu-a contra as críticas e disse que a história de sua generosidade seria lembrada sempre. Jesus não seguiu mecanicamente uma lista de ?coisas para fazer hoje?, e duvido que apreciasse a ênfase que damos hoje à pontualidade e ao planejamento preciso. Ele foi a festas de casamento que duravam dias. Deixava-se distrair por qualquer ?joão-ninguém? que encontrasse, quer uma mulher com hemorragia que timidamente lhe tocou o manto, quer um mendigo cego que se tornou maçante.
Dois de seus mais impressionantes milagres (a ressurreição de Lázaro e a da filha de Jairo) aconteceram porque ele chegou tarde demais para curar a pessoa doente. Contudo, devido a todas essas qualidades que remetem para o que os psicólogos gostam de chamar auto-realização, Jesus quebrou o protocolo. Vivendo num planeta de livre arbítrio e de rebeldia, Jesus não poucas vezes deve ter-se sentido ?pouco à vontade?. Nessas ocasiões se retirava e orava, como para respirar o ar puro de um sistema de apoio à vida que lhe daria forças para continuar vivendo num planeta poluído.
Mas nem sempre recebia respostas formais às suas orações. Lucas registra que ele orou a noite inteira antes de escolher os doze discípulos ? mesmo assim, o grupo incluía um traidor. No Getsêmani orou primeiro para que o cálice do sofrimento lhe fosse tirado, mas é claro que não foi. Essa cena no jardim mostra um homem desesperadamente ?pouco à vontade?, mas resistindo a todas as tentações de uma libertação sobrenatural. Inicialmente, por talvez um ano, Jesus teve grande sucesso. Tantas pessoas afluíam a ele que às vezes tinha de fugir para um barco e afastar-se da praia. Sem dúvida foram as curas físicas que logo o puseram em evidência. As curas foram diversas e não se encaixavam num padrão real.
Pelo menos uma pessoa Jesus curou à longa distância; algumas de modo instantâneo, e outras, de forma gradual; em muitos casos, a pessoa curada devia seguir instruções específicas. Apesar de sua discrição ambivalente, Jesus não hesitou em utilizar os milagres como prova de quem ele era: ?Crede-me quando digo que estou no Pai, e o Pai está em mim; pelo menos crede por causa das mesmas obras?, ele disse aos seus discípulos. ?Sede vós, pois, perfeitos, como perfeito é o vosso Pai que está nos céus?, ele disse, estabelecendo um padrão ético que ninguém podia atingir. Jesus tinha muitas opiniões suas, e usava as Escrituras como comentário. ?Ouvistes que foi dito [...] Eu, porém, vos digo...? era o seu refrão impressivo. Ele era a fonte, e enquanto falava não fazia distinção entre suas palavras e as de Deus. Destemido, Jesus nunca retrocedeu num conflito. Enfrentava os intrometidos e os escarnecedores de toda sorte.
Certa vez, impediu a intenção de uma turba de apedrejar uma mulher adúltera. Noutra ocasião, quando os guardas o iam prender, voltaram para o templo de mãos vazias: ?Jamais alguém falou como esse homem?, disseram, estupefatos diante dele. Jesus até mesmo dava ordens diretas aos demônios: ?Calate!?; ?Espírito mudo e surdo, eu te ordeno: Sai dele, e nunca mais entres nele!?. (Interessante que os demônios nunca deixaram de reconhecê-lo como o ?santo de Deus? ou como o ?filho do Altíssimo?; eram os seres humanos que questionavam sua identidade.) As declarações de Jesus sobre si mesmo (eu e o Pai somos um; tenho o poder de perdoar pecados; reconstruirei o templo em três dias) eram sem precedentes e lhe proporcionavam constantes problemas.
Jesus repete uma frase mais do que qualquer outra: ?Quem achar a sua vida perdê-la-á, e quem perder a sua vida por minha causa, achá-la-á?. Jesus nunca tentou ocultar a sua solidão e a sua dependência das outras pessoas. Escolheu seus discípulos não como servos, mas como amigos. Partilhou momentos de alegria e de tristeza com eles, e orou por eles em momentos de necessidade. Eles se tornaram sua família, os substitutos da mãe, dos irmãos e das irmãs. Desistiram de tudo por ele, como ele desistiu de tudo por eles. Ele os amava, de maneira evidente e simples, e precisava deles para levar seus ensinamentos ao mundo todo depois de sua morte. Alguns psicólogos e psiquiatras, seguindo a liderança de Freud, apontam para as bem-aventuranças como prova do desequilíbrio de Jesus.
O que é, masoquismo ou sabedoria profunda? Qualquer um que vier com uma resposta rápida e fácil talvez não tenha levado suficientemente a sério as bem-aventuranças. Tratando francamente da questão, as bem-aventuranças são verdadeiras? Nesse caso, por que a igreja não incentiva a pobreza, e o choro, e a mansidão, e a perseguição em vez de lutar contra eles? Qual é o verdadeiro significado das bemaventuranças, esse miolo ético e enigmático dos ensinamentos de Jesus? Os que choram serão consolados; os mansos herdarão a terra; os que têm fome serão fartos; os puros verão a Deus. Jesus podia fazer tais promessas com autoridade, pois viera para estabelecer o reino de Deus que governaria eternamente.
Nas bem-aventuranças, Jesus honrou pessoas que não podem desfrutar de muitos privilégios nesta vida. Para os pobres, os que choram, os mansos, os famintos, os perseguidos, os puros de coração, oferecia a certeza de que o seu trabalho não deixaria de ser reconhecido. Receberiam ampla recompensa. Os enlutados sentem tristeza, naturalmente, mas no seu devido lugar: como uma interrupção, um recuo temporário numa batalha cujo fim já foi determinado. Diversas cenas nos evangelhos apresentam um bom quadro do tipo de pessoas que impressionou Jesus. Uma viúva que colocou seus últimos dois centavos como oferta. Um desonesto cobrador de impostos tão arrasado pela ansiedade que subiu em uma árvore para ter uma visão melhor de Jesus. Uma criança sem nome, sem descrição.
Uma mulher com uma fileira de casamentos infelizes. Um mendigo cego. Uma adúltera. Um homem com lepra. A força, a boa aparência, as boas relações e um instinto competitivo podem trazer o sucesso para uma pessoa em uma sociedade como a nossa, mas são exatamente aquelas qualidades que bloqueiam a entrada no reino do céu. A dependência, a tristeza, o arrependimento, um anseio de mudar ? esses são os portões para o reino de Deus. As pessoas que têm falta de tais privilégios naturais, uma vez desqualificadas para o sucesso no reino deste mundo, têm simplesmente de se voltar para Deus no momento da necessidade.
Jesus ofereceu ternamente a graça absoluta. Jesus perdoou uma adúltera, um ladrão na cruz, um discípulo que negou que o conhecia. Ele preparou esse discípulo traidor, Pedro, para fundar a sua igreja e, para dar o próximo passo, voltou-se para um homem chamado Saulo, que se destacou perseguindo cristãos. A graça é absoluta, inflexível, abrangente. Ela se estende até mesmo às pessoas que pregaram Jesus na cruz: ?Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem? foram algumas das últimas palavras de Jesus na terra. Os fariseus tinham apanhado uma mulher no próprio ato de adultério, crime que exigia a pena de morte. O que Jesus achava que deviam fazer? perguntaram, esperando apanhálo em um conflito entre moral e misericórdia. Jesus fez uma pausa, escreveu no chão por alguns minutos e, depois, disse aos acusadores: ?Aquele que dentre vós está sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra?. Quando todos se retiraram, Jesus voltou-se para a mulher encolhida.
?Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou??, ele pergunta. ?Nem eu também te condeno. Vai, e não peques mais?. Essa cena revela um princípio claro da vida de Jesus: ele traz à tona o pecado reprimido, mas perdoa todo pecado francamente reconhecido.
A adúltera foi embora perdoada, com uma nova perspectiva de vida; os fariseus se esgueiraram, apunhalados no coração.
Talvez as prostitutas, os cobradores de impostos e outros pecadores conhecidos reagissem tão prontamente a Jesus porque em determinado nível soubessem que estavam errados e para eles o perdão de Deus parecesse muito atraente. Os fariseus criam que tocar em uma pessoa impura poluía quem a tocava. Mas, quando Jesus tocava numa pessoa com lepra, ele não se contaminava ? o leproso se tornava puro.
Quando uma mulher imoral lavou os pés de Jesus, ela se afastou perdoada e transformada. Quando ele desafiou os costumes entrando na casa de um pagão, o servo do pagão foi curado.
Em palavras e atos Jesus estava proclamando um evangelho radicalmente novo da graça: para tornar pura uma pessoa, não era preciso ir até Jerusalém, oferecer sacrifícios e passar pelos rituais da purificação. Tudo o que uma pessoa tinha a fazer era seguir Jesus.
A oração de Jesus junto à sepultura de Lázaro mostra que ele parecia constrangedoramente consciente de sua identidade dual, ao mesmo tempo aquele que veio do céu e o Filho do Homem nascido no mundo: ?Pai, graças te dou porque me ouviste.
Eu sei que sempre me ouves, mas eu disse isso por causa da multidão que me rodeia, para que creiam que tu me enviaste?. Em nenhum outro lugar Jesus orou tendo em mente o auditório que o ouvia por cima do ombro, como um ator shakespeareano que se volta para a multidão para recitar um aparte. A ressurreição de um homem, Lázaro, não resolveria o dilema do planeta Terra. Para isso, seria necessária a morte de um homem. João acrescenta o detalhe irônico, espantoso, de que o milagre de Lázaro selou o destino de Jesus. ?Desde aquele dia, resolveram matálo.?
E, daquele dia em diante, de modo significativo, os sinais e as maravilhas de Jesus cessaram.
O pronunciamento arrebatador de Jesus excitou seus sonhos mais loucos: ?Assim como meu Pai me confiou um reino, eu o confio a vós?, ele disse magistralmente, e ?Eu venci o mundo?. Judas não foi o primeiro nem o último a trair Jesus, simplesmente foi o mais famoso. Jesus de maneira nenhuma tinha ausência de poder. Se tivesse insistido na sua vontade e não na do Pai, teria invocado doze legiões de anjos (72000) para uma guerra santa em seu benefício. No Getsêmani, Jesus reviveu a tentação de Satanás no deserto. Nas duas vezes ele poderia ter resolvido o problema do mal pela força, com um rápido golpe contra o acusador no deserto ou uma batalha feroz no jardim.
A cruz, o ?cálice? que por fim tornou-se tão aterrador, foi o próprio motivo por que Jesus veio à terra. ?Aqui na cruz está o homem que ama seus inimigos, o homem cuja justiça é maior que a dos fariseus, que sendo rico tornou-se pobre, que dá o seu manto a quem lhe tira a capa, que ora por aqueles que maldosamente abusam dele. A cruz não é um desvio nem um obstáculo no caminho do reino, nem mesmo é o caminho do reino; é o reino que vem.? Num espaço menor do que 24 horas, Jesus enfrentou seis interrogatórios, alguns realizados pelos judeus e outros pelos romanos. No final um governador exasperado pronunciou o veredicto mais severo permitido sob a lei romana.
A falta de proteção de Jesus se destaca. Como sempre, Jesus pensava nos outros. Ele perdoou aos homens que fizeram aquilo. Arranjou quem cuidasse de sua mãe. Deu as boas-vindas no paraíso a um ladrão confesso e absolvido. Como tudo mais na vida de Jesus, a ressurreição provocou reações contraditórias. Os que criam eram transformados; recebiam esperança e coragem, saíam para transformar o mundo. Os que não criam encontravam meios de ignorar as fortes evidências. Jesus já havia predito: ?Se não ouvem a Moisés e aos profetas, tampouco acreditarão, ainda que algum dos mortos volte à vida?.
Não foi nada glamorosa as aparições de Jesus depois do domingo da ressurreição. Não houve anjos no céu cantando hinos, nem reis de longe trazendo presentes. Jesus apareceu nas mais ordinárias circunstâncias: um jantar particular, dois homens andando por uma estrada, uma mulher chorando num jardim, alguns pescadores trabalhando num lago. ?Bem-aventurados os que não viram, e creram?, Jesus disse ao duvidoso Tomé depois de silenciar sua incredulidade com a prova tangível do milagre da Páscoa. Exceto pelas mais ou menos quinhentas pessoas a quem o Jesus ressurreto apareceu, cada cristão que viveu se encaixa na categoria dos ?bem-aventurados?.
A fé exige a possibilidade da rejeição; caso contrário, é fé cega, fanatismo. Jesus anunciou um reino que significava negar-se a si mesmo, assumir uma cruz, renunciar às riquezas, até mesmo amar seus inimigos. Conforme ele o comentava, as expectativas das multidões se esfarelavam. A palavra reino significava uma coisa para Jesus e outra totalmente diferente para a multidão. Jesus foi rejeitado, em grande parte, porque não atendia à imagem nacional de como um Messias devia ser.
Ovelhas entre lobos, uma sementinha numa horta, fermento na massa do pão, sal no alimento: as próprias metáforas de Jesus sobre o reino descrevem uma espécie de ?força secreta? que trabalha de dentro para fora. Ele não falou nada acerca de uma igreja triunfante partilhando poder com as autoridades. O reino de Deus parece operar melhor como movimento da minoria, em oposição ao reino deste mundo. Quando cresce além disso, sutilmente muda de natureza. Em outra ocasião, Jesus foi interrogado pelos fariseus sobre quando viria o reino de Deus. Ele respondeu: ?O reino de Deus não vem com aparência visível. Nem dirão: Ei-lo aqui! ou Ei-lo ali! porque o reino de Deus está dentro de vós!?. Em outras ocasiões disse que o reino jaz no futuro, como quando ensinou seus discípulos a orar: ?Venha o teu reino, seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu?. Cada discípulo, afinal, pertencia à raça mais ferozmente monoteísta da terra.
Até na última noite de Jesus com eles, depois de terem ouvido as reivindicações e visto todos os milagres, um deles perguntou ao Mestre: ?Senhor, mostra-nos o Pai?. Eles ainda não conseguiam assimilar. Jesus nunca foi mais explícito do que na sua resposta: ?Quem me vê, vê o Pai?. Jesus introduziu profundas alterações no modo pelo qual vemos a Deus. Principalmente trouxe Deus para mais perto. Para os judeus que conheciam um Deus distante, inefável, Jesus trouxe a mensagem de que Deus se importa com a relva dos campos, alimenta os pardais, conta os cabelos da cabeça de uma pessoa. Para os judeus que não se atreviam a pronunciar o Nome, Jesus trouxe a chocante intimidade da palavra aramaica Aba.
Era um termo de conhecido afeto familiar, onomatopaico como ?papá?, a primeira palavra que muitas crianças dizem. Antes de Jesus, ninguém imaginaria aplicar tal palavra a Iavé, o Senhor soberano do universo. Depois dele, tornou-se termo padronizado de chamamento até mesmo nas congregações de língua grega; imitando Jesus, tomaram emprestada a palavra estrangeira para expressar sua própria intimidade com o Pai.