André Siqueira 27/03/2021
A Flecha de Deus
A flecha de Deus é mais que um amontoado de palavras, é um daqueles poucos livros que me mudou profundamente, toda a trilogia passa a sensação de se escutar uma história de um sábio a beira de uma fogueira. A quantidade de sabedoria contida em frases simples é surpreendente: “O sapo só corre de dia quando perseguido” ou “Comida de pássaro não enche estômago de jibóia”. Mas o livro está longe de se resumir a isso.
“A arte da conversação”, tema tão recorrente entre outros autores e autoras Nigerianos e tema central de diversas fábulas dos ibos é quase uma personagem, é lindo e ilustrativo a maneira como os assuntos são torneados a desejo do enunciador e a trama é tão leve que poucas vezes aquele que escuta percebe a armadilha ( inclusive busco qualquer referência, antropológica ou de romance, sobre o tema, agradeço demais quem se dispor a dividir). Mesmo com pouquissíma carga teórica anterior sobre o tema fui capaz de observar, a partir da leitura, alguns destes embates não-óbvios e até perceber ganhador e perdedor, talvez completamente errado – realmente preciso ler mais sobre o assunto.
Essa foi a parte leve.
Chinua Achebe ajuda-nos a pensar nesses outros mundos minoritários e suas ontologias que, até hoje, entram em choque e tencionam com a máquina colonizadora/estatal.
A força colonizadora é dura, sofrida e aparentemente imparável. A força do homem branco é claramente ilustrada, as estratégias de “dividir e conquistar” – ou “Quando dois irmãos brigam o estranho leva a herança” em uma perspectiva êmica – tão empregadas pelo império britânico durante suas conquistas ultramarinas aqui são explicitadas e esmiuçadas. Não são outros senão seus conterrâneos que formam a vanguarda da catequizaçao católica. Quem, se não um ibo, sabe onde encontrar outro ibo?
A percepção do homem branco como ferramente divina – flecha de deus – é icônica, já que o próprio protagonista, deus encarnado, é aquele que chega a esta conclusão. Por mais pessimista que seja, nada mais é que um possível retrato de muitos dos povos de África, que tiveram suas culturas despedaçadas por uma projeto colonizador tão brutal quanto o vivido, os quais passam, pela sua condição compartilhada com diversos povos africanos, a ser uma espécie de modelo que carrega as marcas de diversas trajetórias históricas, tanto individuais quanto coletivas.