Rodrigo1001 03/03/2024
Somos instantes (Sem Spoilers)
Título: A Peste
Título original: La Peste
Autor: Albert Camus
Editora: Record
Número de páginas: 288
Há quase 70 anos, proferiu em discurso o franco-argelino Albert Camus: "Cada geração é, sem dúvida, chamada a reformar o mundo. A minha sabe que não vai reformá-lo, mas sua tarefa talvez seja ainda maior. Consiste em evitar que o mundo se destrua."
Naquele dezembro de 1957, ao receber o Prêmio Nobel de Literatura, o filósofo disse que um escritor jamais poderia estar à mercê daqueles que fazem a história, e sim a serviço daqueles que são afetados por ela. Em uma época pós pandemia de Covid-19, o engajado e contestador Camus ressurge como alegoria perfeita para este tempo presente tão absurdo com um dos seus livros mais famosos, A Peste, uma crônica sobre uma epidemia que ameaça dizimar uma cidade.
Dividido em cinco partes, a contemporaneidade deste livro impressiona já nas primeiras páginas, catapultando-nos do passado ao presente. Em todas as páginas, Camus joga com o absurdo da situação provocada pela peste para mostrar o absurdo da própria condição de existir neste mundo.
Narrado do ponto de vista de um médico envolvido nos esforços para conter a doença, a obra ressalta a solidariedade, a solidão, a morte e outros temas fundamentais para a compreensão dos dilemas do homem moderno e da alteridade. Sendo o absurdo o ponto claro de partida das reflexões que propõe no enredo, Camus, em sua genialidade, teceu um aparato literário de forte densidade filosófica, fundamentado sem o hermetismo típico de um Jean-Paul Sartre, por exemplo.
Construindo lentamente sua trama, o escritor chega à futilidade que o tédio traz, à sensação de abandono que a distância forçada do tempo faz ressoar na alma, como se a peste fosse apenas aquele empurrãozinho final para chegar à beira do abismo, abandonando as máscaras de qualquer tipo de esperança, de felicidade, de fraternidade, expondo a grande mentira que assola a humanidade, imprimindo-lhe sua verdadeira face purpurinada de egoísmo e falsidade.
É duro de ler.
Mas, ao mesmo tempo, é belo.
Dito isso, qualquer comentário adicional colocaria em risco a regra de spoiler zero das minhas resenhas. Assim, prefiro deixá-lo, caro amigo, com uma profunda vontade de pôr suas mãos nesse livro e deliciar-se - sozinho, já que A Peste é em si, uma obra que transpira solidão - com a genialidade de um dos autores mais emblemáticos da história da literatura. Acredite, valerá a pena e te fará pensar MUITO em tudo o que enfrentamos nos últimos tempos e seguimos enfrentando nos dias atuais.
Leva 5 de 5 estrelas.
Passagens interessantes:
"Orã é uma cidade aparentemente moderna. Não é necessário, portanto, definir a maneira como se ama entre nós. Os homens e as mulheres ou se devoram rapidamente no que se convencionou chamar de ato de amor, ou se entregam ao hábito de uma longa vida a dois. Tampouco isso é original. Em Orã, como no resto do mundo, por falta de tempo e de reflexão, somos obrigados a amar sem saber." (pg. 10)
"O mal que existe no mundo provém quase sempre da ignorância, e a boa vontade, se não for esclarecida, pode causar tantos danos quanto a maldade" (pg. 125)
"Ele sabia o que a mãe pensava e que nesse momento ela o amava. Mas sabia também que não é grande coisa amar um ser, ou que, pelo menos, um amor não é nunca bastante forte para encontrar a sua própria expressão. Assim, sua mãe e ele se amariam sempre em silêncio. E ela morreria por sua vez - ou ele - sem que, durante toda a vida, tivessem conseguido ir mais longe na confissão da sua ternura." (pg. 270)