erbook 24/04/2022
Crítica à Comunidade Europeia
Imaginem um acontecimento inusitado: a península ibérica (Portugal e Espanha) se descola tectonicamente do continente europeu e inicia um percurso supostamente à deriva pelo oceano Atlântico rumo ao ocidente. Esse fato surreal é o mote desta brilhante narrativa de José Saramago, escrita em 1986, ano em que Portugal ingressou na Comunidade Econômica Europeia (CEE). À época, o país vivenciava um período de redemocratização após longo regime ditatorial instituído por Antônio de Oliveira Salazar, que perdurou mais de 40 anos até abril de 1974. O ingresso de Portugal na CEE implicou severa disciplina econômica e monetária ao país, cuja crítica sutil pode ser lida nesta literatura de alto nível.
Na obra, após fenômenos insólitos, houve ruptura na cordilheira dos Pirineus, separando a península ibérica da França e consequentemente do restante da Europa. Joaquim Sassa lança uma pedra pesada no mar e ela rebate na água por muitos metros; José Anaiço inexplicavelmente passa a ser seguido por milhares de estorninhos pelo céu; Pedro Orce começa a sentir tremores na terra melhor que os sismógrafos; Joana Carda, com pedaço de pau, fez risco no chão que não se desfaz nem com água. Esses 4 personagens e mais alguns que surgem no caminho se encontram e iniciam uma jornada, passando por Santiago de Compostela, guiados pelo instinto do cão Constante, ao tempo em que se transformam no percurso.
Com a mencionada península - mais propriamente ilha - à deriva pelo Atlântico, Saramago expõe o risco para a bacia mediterrânica, o medo generalizado da população, a correria nos aeroportos por parte dos endinheirados que puderam fugir do país, a invasão de hotéis ante a falta de turistas, bem como outros meandros políticos para tentar solucionar o desafio geográfico.
Acompanhamos duas travessias: a dos personagens e a da própria península. Tal como os personagens se transformam, a ideia do autor é que Portugal e Espanha também se modifiquem, buscando inspirações fora da Europa para a construção de identidade cultural e econômica diferenciadas. Uma pista deixada por Saramago sobre onde procurar influências e similaridades é justamente onde a península (ilha de pedra) “estaciona” no oceano Atlântico.
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Dica de Filme baseado nesta obra: “A jangada de pedra” do diretor francês George Sluizer, que, infelizmente, não consegui assistir.
Trecho interessante: “Sabido é que todo o efeito tem sua causa, e esta é uma universal verdade, porém, não é possível evitar alguns erros de juízo, ou de simples identificação, pois acontece considerarmos que este efeito provém daquela causa, quando afinal ela foi outra, muito fora do alcance do entendimento que temos e da ciência que julgávamos ter.”