Coruja 17/07/2020Entra ano, sai ano e penso comigo mesma em me dedicar a releituras de antigos favoritos e ver como eles envelheceram no meu gosto. Invariavelmente adio tal projeto, pois ainda tenho vários títulos não lidos à espera na estante e me sinto culpada em não dar prioridade a eles. A não ser que haja necessidade real - será um livro que vou debater no clube do livro, preciso dele para uma pesquisa, ou ainda, comprei uma edição ou tradução nova -, fico tentando me controlar toda vez que passo pela estante no corredor e meu olho cai em algum desses candidatos a releitura.
A quarentena mudou um pouco esse ponto de vista porque, mais do que nunca, passei a desejar o conforto de velhos conhecidos. Felizmente, reencontrá-los anos depois não me desapontou nem um pouco.
Entre as releituras que tenho feito está essa pequena jóia: Os Livros e os Dias do argentino naturalizado canadense Alberto Manguel, um volume que é - ora vejam só - um diário de releituras de antigos favoritos que o autor manteve durante um ano. Apropriado, não é mesmo? Um dia vou experimentar fazer um projeto igual a esse.
São doze títulos ao todo, um por mês: A invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares, seguido de A ilha do dr. Moreau, de H. G. Wells; Kim, do Kipling, e Memórias de além-túmulo, de Chateaubriand; O signo dos quatro, do Doyle; As afinidades eletivas, de Goethe; O vento nos salgueiros, de Kenneth Grahame; Dom Quixote de Cervantes; O deserto dos tártaros, de Buzzati; O livro de cabeceira, de Sei Shonagon, O livro sagrado, de Margaret Atwood e, para completar, Memórias póstumas de Brás Cubas, do nosso Machado.
De forma bastante livre, Manguel escreve sobre o que vai lendo (e um título vai puxando outro), os lugares por onde passa (durante o ano em que trabalhou nesse título, ele viajou bastante, de sua casa no interior da França para o Canadá, Argentina, Alemanha e por aí afora) e as pessoas com quem convive. Ele não está preocupado em ser crítico, em fazer análises profundas e geniais; pelo contrário, sua prosa é despretensiosa e mais afeita aos meandros da memória que da teoria literária.
É uma viagem por memórias para mim também. Dou-me conta de que li A Invenção de Morel (que não gostei muito à época) e O Vento nos Salgueiros (que está nos meus favoritos) por influência dele. Descubro que minha ligação mental entre Thaddeus Sholto de e Oscar Wilde deriva dos comentários de Manguel sobre Sherlock Holmes. Percebo também que ele foi o primeiro a me apresentar a ideia de viajar para encontrar meus personagens flutuantes. Talvez tenha sido o primeiro a me fazer pensar que listas eram uma boa maneira de me expressar.
Encontro algumas anotações quase apagadas, feitas a lápis nas margens. Adiciono mais outras. Esse é um daqueles livros que mais se valoriza com rabiscos do leitor.
Com suas confissões, seus comentários do cotidiano, suas lembranças de menino, da ditadura argentina, de seus anos de estudante nômade, Manguel vai construindo uma cumplicidade com o leitor que torna Os Livros e os Dias um deleite. E ele faz isso com uma elegância discreta que não intimida mesmo quem não esteja familizarizado com a imensa bagagem cultural que ele traz nessas páginas.
Ao terminar essa leitura, foi procurar a data em que o li pela primeira vez, numa época em que não mantinha planilhas das minhas leituras. Descobri que aparentemente esqueci de marcar a data no Skoob e no Goodreads. Mas havia pistas: devorei vários dos livros do Manguel em 2010, quando não apenas o descobri, como também o encontrei pessoalmente na Fliporto; e A Invenção de Morel está registrado em março de 2011, o que me leva a concluir que foi em algum momento entre essas datas. Feita essa arqueologia literária, calculo que minha primeira leitura ocorreu há quase dez anos, o que significa que era de fato um bom tempo para redescobri-lo.
E esse é de fato um livro que merece ser constantemente redescoberto, relido, daqueles que envelhecem bem conosco. Para os quais voltamos atrás de uma citação, ou quando lemos (ou relemos) um dos títulos que Manguel compartilha conosco. Ele é um daqueles autores críticos que, mais que uma análise, nos oferecem memórias afetivas e o conforto de um refúgio em meio ao caos do cotidiano.
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