Luigi.Schinzari 21/09/2020
Um pouco sobre Os Moedeiros Falsos, de André Gide
Um bom escritor pode demonstrar seus talentos por meio de algumas características basais para a reverência dentro das letras. Pode ser um ótimo criador de personagens e tipos; ser um argumentista sólido, com bons diálogos; pode dosar bem seus símbolos sem deixar a obra pedante ou intratável pelo público médio; talvez saiba como elaborar uma boa história, de início ao fim, prendendo o leitor em cada página, ansioso por saber a conclusão. André Gide (1869-1951), escritor francês e Nobel de Literatura em 1947, junta todas essas características em sua obra-prima, Os Moedeiros Falsos (1925), e ainda nos brinda com uma aula sobre o formato romance e a boa literatura.
Resumir a história de Os Moedeiros Falsos, um dos maiores clássicos da literatura francesa e universal, é uma tarefa quase impossível. São tantos os acontecimentos que Gide nos apresenta, de tantos pontos de vista e, inicialmente, tão desconexos, que o leitor se encontrará sendo guiado às cegas por um escritor que sabe muito bem quais sensações -- e sem dúvidas a confusão é uma delas -- quer despertar no leitor e quando as fará emanar, tendo a percepção do interlocutor em relação a obra como uma das características fulcrais para o tema principal dentro da vasta miscelânea de tópicos abordados: a distinção entre realidade e o que entendemos ser a realidade.
Acompanhamos o núcleo basal de três personagens (os jovens Bernard e Olivier e o tio-escritor deste, Édouard) e as ramificações numa gama incontável de personalidades e situações; muitas vezes, estas são tão absurdas e inusitadas que não vemos, primeiramente, a conexão em que irá ornar com o resto da trama, mas André Gide não deixa uma ponta solta que seja, fato que a transforma em uma obra inesgotável e, de acordo com o próprio autor em relação a sua carreira como um todo, feita para leitores que não se cansam, pois com toda a certeza uma segunda e consequentes leituras e releituras irão enriquecer ainda mais a percepção sobre as camadas de Os Moedeiros Falsos.
Assim como em Dom Casmurro de Machado, O Grande Gatsby de Fitzgerald e tantas outras obras, Gide lida com a confiança do leitor em relação as palavras ditas pelas personagens, com o adendo de elevar esta característica a mote da trama. Os moedeiros falsos da trama são um pano de fundo para buscarmos visualizar se o que vemos é a realidade ou um foco de luz sobre ela. Cada trama, de modo muito hábil, vai sendo contada gradualmente por cada personagem que nos é apresentada, tendo eles visões dissonantes sobre o mundo e sobre seus semelhantes, cabendo a nós e as outras peças deste tabuleiro construído por André Gide acreditar naquilo ou não.
O caldo narrativo de Gide é engrossado pela sua paixão e conhecimento sobre a literatura e seus instrumentos. Na obra, em um exemplo perfeito de metalinguagem -- creio que, junto a Dom Quixote, seja o melhor uso desta função --, acompanhamos Édouard, tio do jovem Olivier, escrevendo um livro chamado Os Moedeiros Falsos, assim como o que temos em mãos e que foi escrito por André Gide.
Por Édouard, escritor de pouco renome -- diferentemente do conde Passavant, espécie de antagonista de Édouard e que, na visão deste, se entrega a opinião popular para obter sucesso fácil --, acompanhamos a construção de um romance (mesmo que, do livro dentro do livro, só tenhamos acesso direto a poucas linhas) e o processo reflexivo para encontrar as mensagens que quer passar ao leitor futuro, enquanto a realidade -- a de Édouard e não a nossa (talvez) -- vai se confundido com a própria obra, interferindo tanto nas personagens de Gide quanto no próprio tom da obra, que vai assumindo cada vez mais, propositalmente, um ar folhetinesco e dinâmico, sem nunca esquecer seu tópico central sobre a distinção entre a realidade e a percepção que temos dela.
Tão vasto em seus temas e tão bem desenvolvido em cada característica sua, são muitos os níveis de compreensão que podemos ter da obra Os Moedeiros Falsos, uma obra inesgotável e essencial para entendermos como se constrói um bom romance, tanto por seu tema quanto pela mais simples leitura que fizermos da obra, exemplo perfeito de brilhantismo na literatura. Não à toa, Gide foi agraciado com um Nobel de Literatura, pois sua obra, como todo clássico universal deveria ser, é vasta em paixão e em técnica... E como carece a tantos autores possuir essas duas características em tão alto nível!