jota 26/03/2014Um outro diárioO Anexo é uma ficção da escritora inglesa Sharon Dogar, que recria episódios do famoso diário de Anne Frank a partir das imaginárias observações do garoto Peter Van Pels. Uma das oito pessoas que passaram cerca de dois anos escondidas no anexo de um armazém em Amsterdam tentando escapar dos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. E apenas um escapou, como se sabe (no final do livro a autora informa o que destino de cada um).
Otto Frank, pai de Anne, foi o único sobrevivente (ele viveu até os 81 anos; faleceu em 1980) e a ele devemos a publicação do diário da filha. Segundo alguns, Peter teria morrido a caminho do campo de concentração de Mauthausen, transferido de outro campo, Auschwitz. Segundo outros, como a própria autora acredita, teria morrido em Mauthausen mesmo, em 11 de abril de 1945, menos de um mês antes da libertação do campo, que se deu em 5 de maio. Ele tinha dezoito anos então.
O diário do garoto alterna momentos no esconderijo com a cruel realidade de Auschwitz, de onde poucos conseguiam sair com vida e muitos pediam para ser mortos ou se atiravam sobre as cercas de arame eletrificadas para abreviar o sofrimento que lhes era imposto pelos nazistas. São trechos que comovem demais, que despertam nossa compaixão ao extremo. Mas Dogar também faz com que Peter coloque alguma poesia e certo humor em sua curta vida, especialmente durante o tempo em que conviveu com Anne e os outros. E é esse tempo que ganha a maior parte das páginas do livro.
O sonho dele – quer dizer, um de seus sonhos – era fazer amor com uma garota antes de morrer; ele tinha certeza de que iria morrer logo, dada sua condição de judeu. Mas ao mesmo tempo nutria esperanças de que todos ali fossem salvos pelos ingleses ou americanos (eles ouviam rádio no esconderijo e recebiam suprimentos e informações do pessoal holandês que trabalhava no armazém). Em certo momento Peter pensa:
“Se um dia eu sair daqui, vou fazer amor em muitas línguas – com uma garota de cada país (com exceção da Alemanha). Ou então encontro Liese e faço amor só com ela, mas em todas as línguas.
“Tenho uma lista de coisas para fazer quando sair daqui.
“Ganhar dinheiro.
“Comer o que me der na telha.
“Pôr todo dia uma roupa diferente.
“Comprar um chapéu de feltro.
“Não vou ser judeu nem cristão nem nada; vou ser apenas um homem.”
Otto Frank sobreviveu aos campos de extermínio, Anne morreu, Peter também, os demais morreram todos no final. Mas Sharon Dogar construiu esse livro com muito talento, habilidade e imaginação, que nos faz crer que estamos o tempo inteiro muito próximos deles todos (ao menos de Peter e Anne), tanto naqueles pequenos momentos de alegria como nas tristes horas de aflição e suplício. Como se a história estivesse se passando bem na nossa frente, como se estivéssemos vendo uma peça num teatro no anexo dos Frank em Amsterdam. E Peter estivesse falando um monologo para sua plateia – nós, os leitores.
Aqui um trecho muito especial, próximo do final do livro e também do fim de Peter. Ele pensa em voz alta, dirigindo-se aos nazistas: “Mesmo que vocês substituam meu nome por um número [tatuado no braço], mesmo que não me deem colher com que comer nem roupa nem sapatos que calçar – obrigando-me a viver como se o fosse, eu não sou um animal.” Tampouco os nazistas eram animais. Eles eram verdadeiros demônios, sabemos.
Lido entre 23 e 25/03/2014.