Eduardo 30/11/2017
Como adorar a trajetória de uma personagem insuportável
Empatia: eis um sentimento que o leitor provavelmente nunca terá por Victoria Jones, protagonista desse livro. Por mais que ela experimente diversas sensações e lições que mudem seu modo de lidar com a vida e com as pessoas, é quase impossível desenvolver uma afeição genuína por Victoria. Como é possível que, ainda assim, sua trajetória seja tão bela, emocionante e inesquecível? Vanessa Diffenbaugh, com muita destreza, cria uma história que mostra, sem clichês, heroísmos ou romance barato, que "qualquer pessoa pode se transformar em algo belo".
Victoria é órfã. Durante toda sua vida, Meredith, sua assistente social, fez tudo o que pôde para arranjar famílias que a adotassem, tentando livrá-la, assim, dos orfanatos onde passou sua infância e adolescência. No entanto, Victoria sofria de uma condição peculiar: a misantropia, responsável pelo horror que sentia pelas pessoas. Odiava qualquer tipo de contato humano. Por consequência (ou cabe aqui também a causa, se analisarmos outros pontos de vista), era uma criança rebelde, mal-humorada, complicada de lidar e propositalmente problemática. Por culpa própria não conseguia passar mais do que alguns dias com suas famílias adotivas; todas a devolviam ao orfanato em virtude de seu comportamento insuportável. Tornou-se, assim, inapta para adoção.
Entretanto, Victoria conseguiu se afeiçoar a uma de suas mães: Elizabeth, que a adotou aos nove anos. Foi com ela, dona de um vinhedo e profunda conhecedora das flores, que aprendeu a mágica linguagem das flores, baseada em uma cultura da era vitoriana, que atribuía às flores significados relacionados a sentimentos, vontades e comportamentos. Victoria descobriu ali sua paixão e desde então não a abandonou. Tudo corria bem, até que, como de costume, Victoria colocou tudo a perder e Elizabeth perdeu a guarda da menina.
Daí em diante a menina só tem interesse por um único assunto: flores. Por todos os abrigos que passa encontra maneiras de cultivar suas plantas e coleciona livros e dicionários sobre o assunto. Quando completa dezoito anos e é emancipada, não tem onde morar e nem emprego. Resolve então morar na rua e cultivar seu pequeno jardim em uma praça. É nesse ponto da história que ela conhece Renata, dona de uma floricultura, que a emprega em sua loja. Por conta do trabalho, ela precisa se dirigir até o mercado de flores frequentemente, onde conhece Grant, um vendedor de flores que, no início, parece mais misterioso que a menina rabugenta. A beleza da história e da transformação de Victoria principia-se aqui.
Usar uma personagem que impacienta qualquer leitor por conta de seu comportamento foi algo arriscado. Dizer que essa personagem sofreria uma transformação comportamental pareceu ainda mais ousado, como se fosse possível prever uma bela trama de benevolências, pessoas complacentes, arrependimentos e um amor avassalador que transformaria aquela alma surrada pelo abandono. Não é bem isso o que acontece. A história se apresenta esplendidamente humana, eliminando qualquer tipo de "conto de fadas" do seu enredo.
Esse livro apresenta, de forma bastante emocionante, a relação de Victoria com as flores e com as pessoas, e como uma complementa a outra. Se não lida bem com a comunicação verbal, que as flores falem por ela, não é mesmo? Mais do que isso, mostra a evolução de uma menina que passou a vida toda repelindo qualquer aproximação humana, como também mostra o descobrimento por parte dela de três formas de amor: de uma filha para com a mãe, de uma mãe para com a filha e da paixão (aqui como subtítulo do amor). Tudo discorre de forma sutil. Há humanidade na história porque não há ligeireza. Victoria não se transforma de cardo em cosmos de uma hora para outra. A autora não mostra a semente e depois a flor; ela apresenta a semente, seu desenvolvimento, o despontar das primeiras folhas, o botão e, por fim, a flor. É essa a beleza na trajetória de Victoria.
Há passagens extremamente emocionantes no livro (e uma delas um tanto quanto polêmica) que não podem ser citadas sem que o enredo fosse revelado. As relações de Victoria com Elizabeth, com o mistério que envolve a família de sua mãe adotiva, com o mistério por trás do mercador de flores e, principalmente, com a descoberta de certa "humanidade em si mesma", fazem de A Linguagem das Flores uma história ao mesmo tempo simples e sentimentalmente multifacetada. No início há hortênsias, helênios, arquilégias, manjericão, ibéris, gerânios vermelhos e cardos por todo o lado, mas o final é um jardim de cravinas, avelãs, eucaliptos, azedinhas, olivas, campânulas, jacintos roxos, orégano, rosas vermelhas e musgos. É claro que essa última frase não poderia ter sido escrita se não fosse pelo maravilhoso dicionário de flores de Victoria que acompanha a obra. :)