maria.e.sousa.7 29/03/2023
De aquecer o coração
Não me recordo de já ter lido este autor anteriormente, mas gostei bastante da sua narrativa.
O encontro com o protagonista, Mr. Mamoulian, funciona como uma espécie de bálsamo sobre a nossa alma tão calejada dos encontros e embates humanos modernos, da vivência no dito ?mundo cão? atual, da selva de pedra, da dinâmica do cobra-engolindo-cobra que tanto caracteriza nossa sociedade hipercompetitiva, fria e indiferente. Certo, a estória se passa cem anos atrás, mas creio que esse endurecimento humano já era bastante notado então ? especialmente no pós-guerra.
Exatamente por se passar no pós-guerra, temos o contexto de grande destruição física dos símbolos da civilização (arquitetura, arte, literatura) destruição humana, e de pessoas muito feridas, emocional, mental e fisicamente ? perdas terríveis, humanas e econômicas. Há o paradoxo de as pessoas estarem ao mesmo tempo aliviadas com o fim do horror, amedrontadas de que ele se repita, e esperançosas de que tenhamos aprendido a lição para não o repetir.
A bondade intrínseca e, em certos momentos, até mesmo a franca ingenuidade (seria mesmo ingenuidade?) do Sr. Mamoulian dá um quentinho no coração e dá vontade de termos tido, nós mesmos, o privilégio de tê-lo conhecido. O Sr. Mamoulian resiste e insiste em confiar no ser humano, ao risco da sua própria segurança, financeira, e mesmo pessoal. O autor diz, através da sua personagem, que sim, é preciso esperançar, apostar, confiar que o lado mais luminoso da natureza humana prevaleça, a despeito dos resultados recentes dos domínios da sombra.
Neste cenário de escombros, literal (a casa do protagonista e muito dos arredores estão em ruínas devido aos bombardeios da guerra), e figurativo (pessoas mutiladas fisicamente, deprimidas emocionalmente, economicamente encurraladas, e mesmo suicidas), figuras improváveis, de gerações diferentes, vão se encontrando, empatizando-se mutuamente e se irmanando no sofrimento, assim como na busca de soluções e melhorias para todos.
O Sr. Mamoulian era riquíssimo e perdeu tudo, inclusive os _amigos_ e a fama que o dinheiro lhe trouxera; encontra um suicida, Jakob, e usa a tática do pouco interesse para dissuadi-lo da sua decisão lúgubre ? não apenas o dissuade dos seus intentos suicidas, como acaba por leva-lo para casa; Dona Magdalena, a _pedreira por profissão_,mulher já de meia idade, viúva, sem perspectivas de moradia, mas à espera do retorno do filho que foi para a guerra; o trabalhador milionário, mas amargado pela desvalorização da esposa; a prostituta bonitona, ciente e usando bem de seus recursos, extremamente sincera mas ainda assim gentil... cada personagem, a seu próprio modo, profundamente ferida pela vida e amedrontada pelas incertezas do futuro. Todos lidando com grandes perdas, inclusive de familiares. Juntam-se e formam um nova família, em que está implícita a ideia: família é quem se importa, é quem fica junto, é quem não solta a mão. E ilustram belamente o versículo citado pelo próprio Mamoulian: _?Ide, pois, para as encruzilhadas dos caminhos e convida a quantos encontrardes?_. Mamoulian prossegue: ?Eu fui até a encruzilhada e convidei a quem encontrei - não me arrependi?. Mamoulian e Simmel dão uma lição de vivência do Evangelho de Cristo, relembrando que é fácil ver o outro como inimigo, por causa das diferenças; a saída é a inclusão.
O livro mistura o tom lúgubre e de incerteza do pós-guerra ao otimismo e esperança desses protagonistas que vão vivendo da melhor forma que conseguem, dando, eles mesmos o seu melhor a cada momento. A honestidade ingênua do Sr. Mamoulian dá o tom da narrativa e, por vezes nos perguntamos se ele de fato é ingênuo, ou assim age para tirar o melhor das pessoas. E claro, o grande senso de humor, também ingênuo até certo ponto, torna a narrativa muito engraçada, a despeito de tudo - Simmel consegue relatar uma tentativa de suicídio de forma engraçada.
Questionam-se valores, ética, moralidade, laços, perspectivas. Afinal, terá o homem aprendido com seus erros? Ou seria estúpido o suficiente para seguir apostando no medo e no poder?
Achei interessante o preâmbulo de cada capítulo, que em lugar de ser spoiler, instiga a curiosidade de quem lê. Porém, me incomodou o ritmo um pouco lento e, em alguns momentos, excessivamente descritivo. Talvez não ajudou o fato de eu ter acabado de ler _Kindred_, que, ao contrário deste, tem um ritmo intenso e vertiginoso, de tirar o fôlego. A placidez de ?Ainda resta uma esperança? me impacientou em certos trechos.
O título traduz bem a tônica do livro, de esperança e reconstrução. Embora soe ingênuo em alguns momentos, é um verdadeiro alento, de aquecer o coração.
Recomendo!
???? - 3,5 de 5