Euflauzino 18/11/2013Um mergulho no lago negro do ser humanoTenho comigo o livro de Fabio Shiva há séculos, porém como sou fotofóbico, tinha dificuldades em lê-lo no computador, mas conhecendo o autor como conheço (parece ser há séculos também, tamanha identificação) sabia que ali havia coisa boa, muito boa. Eu queria sentar com Fabio e conversar por horas sobre o livro, sobre a vida, sobre “noir” e religião, sobre filosofia e sociologia, porém temo que minha capacidade intelectual seja limitada para um bate-papo dessa envergadura.
Agora em minhas mãos tenho também a versão impressa, o rebento de Fabio, com capa e diagramação belíssima. O sincronicídio (Caligo, 520 páginas), conta a história do último dia do inspetor Alberto Teixeira, e quem seria ele?
“Era o corpo desnudo que dava o testemunho do homem de ação. Enfiado em algum dos ternos baratos aos quais estava acostumado, sempre um número acima, não deixava notar os músculos rijos, bem delineados, habituados à fadiga e ao esforço, cultivados por exercícios. Era o corpo sem roupas que revelava também suas histórias de batalha, crivadas em cada cicatriz.”
Pronto, fomos apresentados assim de forma crua, sem delongas ao personagem principal. Um cara altamente sexy, bem ao estilo feminino e tremendamente bruto, além de ter como uma de suas características um falo avantajado. Dessa forma, Fabio já abre o jogo e cabe-nos procurar o assassino e qual sua motivação, um clássico “whodunit” saborosíssimo.
Alberto é enviado a um motel em busca de evidências de um duplo homicídio ali cometido. O autor é detalhista e extremamente descritivo, gosto demais:
“... parou diante do Le Barde. Durante o dia, com o letreiro em neon apagado, a fachada mostrava bem a espelunca que era o motel. À noite, a sujeira incrustada na fachada era menos visível, e os amantes afoitos não reparavam ou não se importavam com baratas passeando pelos corredores ou com lençóis que eram trocados somente na lua cheia.”
O casal encontra-se na banheira e é aí que o autor nos brinda com frases fortes, além de um grande apelo para o “gore”:
“Teixeira patinou pelo chão viscoso, banhado em vômito. Afinal chegou perto da banheira o suficiente para empurrar o interruptor na parede. O ronco do motor da hidromassagem parou de imediato, com um estalo seco. O borbulhar na banheira também cessou, levando a ilusão de que os corpos se mexiam. A morte pareceu mais definitiva, agora que o som e o movimento, atributos dos vivos, não mais acrescentavam seu grotesco toque de zombaria à cena.”
Coincidentemente ele se depara com características semelhantes a um outro crime não elucidado e rememora o dia em que conheceu um falecido figurão, homem envolto em mistérios e que alterou o curso de sua história para sempre. Perceba a sutileza (loucura) da teoria escrita no livro “La coincidenza” do tal figurão:
“Uma mistura de filosofia quântica, matemática aplicada, misticismo oriental e autoajuda nazifascista... suas ideias eram malucas e potencialmente perigosas."
Nesse ínterim, Alberto Teixeira se envolve com várias mulheres, todas elas loucas para provar um pouco da masculinidade do inspetor. O sexo está presente e se faz extremamente necessário na obra, intrinsecamente ligado à trama, sem subterfúgios:
“O beijo havia chegado àquele ponto em que se transforma em uma dança de línguas... Todas as contradições haviam sido revogadas, ainda que só pelo momento. O imperativo categórico do sexo vencia mais uma vez.”
“Varlene passou a língua provocante pelos lábios. Seu comportamento tornava-se cada vez menos o de uma psicóloga cara, e mais o de uma prostituta barata. ‘Eu prometo que não vai doer nadinha.’”
Enquanto o sexo flui, Alberto relembra passagens que seria melhor que fossem bloqueadas no porão de sua memória. Mas aí já não quero estragar a surpresa. Não esperem pela obra de um autor estreante, “O sincronicídio” é livro de um autor maduro e seguro de seu ofício, caminha fácil pelo “noir”, alguém que cozinhou sua obra por anos, sem apelos, para que pudéssemos saborear o melhor. Bia Machado (ela também escritora e agora editora) enlaça as mãos do autor e a seu lado, corajosamente, embarca na aventura, certa de sua qualidade. Não há como não obter sucesso.
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