jota 30/06/2021BOM: livro curto que, apesar de fazer parte de um ciclo sobre a cidade de Ferrara e seus dramas sob o fascismo, pode ser lido separadamenteLido entre 17 e 26/06/2021. Avaliação da leitura: 3,5/5,0
Hexalogia ou sextologia (aprendi agora) é um termo que se aplica a um conjunto de seis obras artísticas em série ou que têm algo a ver entre si. É o caso o ciclo de livros do autor italiano Giorgio Bassani (1916-2000), nascido numa próspera família judia de Ferrara, no norte da Itália. Seus seis livros tratando da cidade e seus habitantes, publicados entre os anos de 1956 e 1972, foram reunidos em 1974 pela editora milanesa Mondadori num volume único intitulado Il Romanzo di Ferrara. Que eu saiba, somente dois deles foram traduzidos para o português até agora. Esse Óculos de Ouro (1958) e aquele que é considerado sua obra-prima, O Jardim dos Finzi-Contini (1962). O livro depois virou filme de sucesso, premiado com o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1972. Desconfio que seja o melhor exemplar da hexalogia...
Apesar da ligação entre si, os volumes (nenhum dos quais é muito longo) podem ser lidos independentemente. Eu pretendo (ou pretendia, dependo de encontrá-los todos disponíveis) ler a série toda, e já li o segundo e o terceiro volumes, citados acima. Ainda restam aqueles que não foram traduzidos por aqui: o primeiro livro, Dentro Le Mura (1956), o quarto, Dietro La Porta (1963), o quinto, L’airone (1968) e o sexto, L’odore del Fieno (1972). Eles têm a ver com a vida em Ferrara na era fascista, os anos 1930 especialmente. Muitos dos personagens dessas obras, principais ou secundários, são israelitas, judeus, e ficam sujeitos às chamadas “leis raciais” impostas pelo ditador Mussolini a toda Itália a partir de 1938. Mantêm relações normais com a burguesia italiana (católica, conservadora, moralista) ou até mesmo fazem parte dela plenamente enquanto não são discriminados, colocados todos no balaio geral das minorias a serem evitadas. Ou exterminadas, como se verificará mais tarde, já durante a guerra...
Óculos de Ouro se passa nas vésperas da promulgação das ditas “leis raciais”, porém o personagem principal não é um judeu ou descendente, mas um médico veneziano que instalou consultório em Ferrara. O otorrinolaringologista usa óculos com aros de ouro, daí o título do livro. De início, Athos Fadigati é visto como uma pessoa agradável, um cavalheiro, ótimo profissional, mas alguém certamente em quem “havia alguma coisa que não se podia entender perfeitamente. Mas isso também era agradável, nele, isso também atraía”, como confessa o narrador nas páginas iniciais. O problema é que depois a cidade começa a notar os aros dos óculos de Fadigati brilharem na obscuridade de certos lugares que os cidadãos ferrarenses consideravam mal frequentados, especialmente as platéias dos cinemas locais (em vez dos balcões, mais respeitáveis), onde se podia marcar encontros sexuais. Nada disso é dito claramente, apenas sugerido, como também em nenhum momento da história qualquer cena homoerótica seja narrada.
Então aos poucos, nas conversas sociais se começa a especular se o médico, que não era casado nem tinha namorada, não seria certamente um “daqueles”, um invertido, ou seja, que apreciasse rapazes, não mulheres... Também porque sua amizade com gente jovem, especialmente com estudantes que iam de trem de Ferrara para estudar em Bolonha, era muito mais notável do que com pessoas de sua idade e nível financeiro. As coisas pioram para Fadigati quando ele aprofunda seu relacionamento com um amigo do narrador, Eraldo Deliliers, jovem estudante e boxeador, admirado por sua beleza física, a quem dá presentes e viagens e de quem em troca recebe desprezo e mesmo uma agressão uma vez. Alguns cidadãos, na verdade suas mulheres, passam a falar ainda mais maldades sobre o médico, passam a considerá-lo um “depravado”, um “velho degenerado”. E aquelas pessoas que tinham amizade com Fadigati começam a evitá-lo, ou são aconselhadas a fazer isso. Mas onde entram os judeus nessa história, já que uma das características da literatura de Bassani é justamente a presença deles em seus livros?
Bem, o narrador é um jovem estudante judeu, que em nenhum momento deixa de ser amigo do médico, mesmo quando seus pais, mais próximo do final da trama, passam a desgostar dessa amizade e o médico vê-se praticamente sozinho, abandonado mesmo por um cão que recolhera na rua. O pai do narrador vai percebendo que a instabilidade política vigente, quer dizer, o crescimento do fascismo com suas “leis raciais” é um fator com o qual os judeus italianos e seus descendentes devem se preocupar. A proximidade do ditador Mussolini com Hitler é saudada por uma amiga da família, a detestável senhora Lavezzoli, que é italiana, uma das pessoas que desde o início mais perturbam e agem com maldade contra Fadigati. Porém, alguns israelitas não acreditavam que seriam discriminados pelos fascistas e se isso ocorreu com os Finzi-Contini, como se menciona a certa altura do livro, seria porque essa família era uma exceção, vivia à margem, isolada numa mansão, que sequer os convidava para uma partida de tênis em sua magnífica quadra, em seu magnífico jardim. Ah, eles se enganavam: o medo e a tragédia rondariam Ferrara mais cedo do que supunham. E, de certo modo, o doutor Fadigati, mesmo não sendo judeu, seria uma das primeiras vítimas desses tempos de intolerância...