petite-luana 02/04/2016Téa Obreht é uma jovem autora nascida em 1985 na cidade de Belgrado, hoje capital da Sérvia, mas que outrora foi parte da extinta Iugoslávia, território que veio a ser subdividido em 6 países: Croácia, Bósnia-Herzegovina, Eslovênia, Macedônia, Sérvia e Montenegro (além de um protetorado da ONU: Kosovo). Fazer parte da Península Balcânica significa ter, de alguma forma, contato com uma cultura diversa e fragmentada entre diferentes povos, que compartilham raízes, mas se diferenciam em seu desenvolvimento. Em seu livro de estreia "The Tiger's Wife" (no Brasil, lançado pela editora LeYa como "A noiva do tigre", com tradução de Santiago Nazarian) a autora costura na história exatamente essa bagagem histórica da fragmentação de um povo e sua cultura, e acredito que isso foi o que fez este livro ganhar o Orange Prize para ficção por autora mulher em 2011, com mérito.
O livro narra a trajetória da jovem médica Natalia, que juntamente com sua melhor amiga Zóra, vão em missão de paz vacinar algumas crianças órfãs acolhidas pelo Frade Antun em um vilarejo da Península Balcânica chamado Brejevina, que se localiza em uma região fronteiriça. Antes de chegar ao vilarejo, Natalia recebe a ligação de sua avó comunicando o falecimento repentino de seu avô numa cidade chamada Zdrevkov, alegando não saber porque ele estava lá, a avó lamenta a morte do marido ter ocorrido nesse lugar desconhecido, de onde o corpo foi enviado sem seus pertences, impedindo assim o costume de seu povo de fazer uma cerimônia de luto por 40 dias com os objetos do falecido para que ele encontre paz.
O grande movimento da narrativa está na forte ligação entre Natalia e seu avô, assim como a avó, Natalia vasculha em sua memória circunstâncias que possam ter levado o avô a morrer tão longe de casa, e promete a avó entrar em contato com o hospital e tentar reaver os objetos. Já em Brejevina, Natália descobre que a cidade na qual o avô morreu é um lugar próximo e enquanto aguarda para vacinar as crianças, poderia ir até lá, ela fica hospedada na casa dos pais de frade Antun, o senhor Barba Ivan e sua esposa Nada, e em meio a essa missão, Natalia presencia as crenças que transitam pelo lugar que foi invadido por ciganos que procuram o corpo de um familiar ali enterrado, de encontro a essas crenças, Natalia lembra de crenças comentadas por seu avô e retoma lembranças de momentos passados ao lado dele, sua trajetória de vida e como também se tornou médico em meio a um território em zona de guerra que desmembrava países. Natalia passa a se lembrar do grande apego do avô ao livro "O livro da selva" de Rudyard Kipling, seu fascínio pelo tigre Shere Khan da história e a relação desse animal misterioso com as histórias que o avô contava sobre sua infância passada no pequeno povoado de Galina, que na época da Segunda Guerra Mundial fora isolado dos invasores alemães por um rigoroso inverno, e passou a ser assolado pela presença de um tigre e sua mística noiva; assim como lembranças da juventude do avô, acontecimentos misticos que ele acreditava ter vivenciado como médico do exército ao encontrar com um homem sem morte. Ao entrelaçar essas histórias, Natalia resgata sentidos e transforma a narrativa, que se dá em primeira pessoa, também em um resgate da tradição de um povo, compartilhando lendas, costumes e crenças de gerações passadas.
O livro transita entre realidade e fantasia, em uma linha tênue que acaba por compôr uma espécie de obra do realismo fantástico. Um romance que mantém vivo a memória de um povo refletido em suas histórias e representado pela sua cultura, um povo que luta para compreender sua própria identidade e não ser esquecido em meio a perda de território. Há um trecho no livro que me aproximou muito da dor relatada ali, e que acredito que resume bem o cerne da obra:
"A guerra tinha alterado tudo. Uma vez separadas, as peças que formavam nosso velho país não carregavam mais as características que representavam as antigas partes respectivas do todo. Coisas previamente repartidas cenários, escritores, cientistas, histórias tinham de ser distribuídas de acordo com seus novos donos. O Prêmio Nobel não era mais nosso, mas deles; tiramos o nome do nosso aeroporto de seu inventor louco, que não era mais uma figura popular. E o tempo todo dizíamos a nós mesmos que tudo acabaria voltando ao normal. Na vida do meu avô, os rituais que se seguiram à guerra eram de renegociação. Em toda sua vida ele fora parte de um todo não apenas parte, mas feito disso. Ele nascera aqui e aqui fora educado. Seu nome falava de um lugar; seu sotaque, de outro. Nada disso importava antes da guerra; mas, conforme o tempo passava e a Academia Militar não o convidava oficialmente para voltar a praticar medicina, ficou claro que um retorno à normalidade profissional não seria possível, e que ele teria de se manter com seus pacientes debaixo do pano até que resolvesse se aposentar." (p.139).
site:
petite-luana.blogspot.com