spoiler visualizarMaria 18/01/2022
Esta é a história de Rebecca Schwart. Ou Rebecca Tignor. Ou Hazel Jones. Ou Hazel Gallagher.
Um dos primeiros melhores capítulos que já li na vida (nada a dever a Tolstói em "Anna Karênina". Rá!). Logo nas primeiras páginas, uma citação de Longfellow - “as folhas da memória produzem um farfalhar de lamento no escuro”- ficou horas sobrevoando em minha mente, quiçá como a Coruja da Minerva, evocada por Jacob em suas reminiscências de um passado em que fora tão íntimo da filosofia de Hegel e Marx (curiosamente, o poeta será citado, ainda que de forma brevíssima, no decorrer da história.)
Jacob Schwart -cujo sobrenome alemão ignoraremos em todo o decorrer da história- é um "estrangeiro", com ideias socialistas que, fugindo em desespero da Alemanha nazista busca, ironicamente, os Estados Unidos como “refúgio”, acreditando que aquela terra, ainda marcada pela Grande Depressão, seria o cenário ideal para que um ex-professor de matemática, entusiasta da filosofia, pudesse reconstruir uma existência DIGNA com a família, esposa e 3 filhos (a menina, Rebecca, nascera de um parto extremamente difícil em um navio e, sendo assim, “condenada” -não na concepção do pai, evidentemente- a ser uma “americana”, ao contrário do restante da família.
Acerca da melancólica Anna Morgenstern, cujo sobrenome -doce, poético, musical-, ao contrário do marido, somos apresentados, sabemos da sua paixão pela música clássica, do quanto amava tocar piano, do quanto fora bela. E amada. E, dolorosamente, assistimos impotentes à decadência dessa adorável moça alemã, transformada em “despejo de frustrações” do marido -que chegou ao extremo de impedi-la de usar a língua alemã, obrigando-a se comunicar em uma língua que jamais chegará a compreender minimamente-, subserviente ao Grande Público, mas um TIRANO na “doce harmonia do lar”. Afinal, um pobre coveiro, humilhado e desrespeitado por todos, só teria a própria família para subjugar da forma como era subjugado, com atos de sadismo cada vez mais requintados, afinal, nosso “humilde coveiro”, ridicularizado pela ocupação (embora o próprio Jacob fizesse questão de ressaltar a si mesmo a importância daqueles que “lidavam com a Morte”), era um homem “instruído”, um homem que “pensava”, um homem “íntimo” de Hegel...
Após assistir ao assassinato da mãe e, em seguida, o homicida, o próprio pai, cometer suicídio, poupando-a por ser “americana”, acreditando, em seus últimos delírios, que a filha estaria “protegida” naquela terra de oportunidades, por não ser um dos “Outros”, mas “um deles”, Rebecca se encontra inteiramente sozinha (embora a solidão tenha sido sempre uma constante em sua vida), uma vez que os irmãos já haviam abandonado a família. Encontrará o apoio de uma ex-professora, protestante que desejava a todo o custo “salvá-la”, mas que não tinha a menor ideia de como salvar uma alma tão jovem e, ao mesmo tempo, tão terrivelmente atormentada. Rebecca, que era um mistério até para si mesma; ou, quem sabe, principalmente para si mesma, tinha a seu favor aquela força de vontade terrível que faz com que escolhamos SOBREVIVER, não importa a quem tenhamos que abandonar (inclusive a toda uma existência anterior).
Assim como na vida real, um “príncipe” -se não ignorarmos o quanto tais figuras podem ser opressoras, despóticas, crueis- com idade o bastante para tê-la como filha surgirá no caminho da Rebecca adolescente, tão arredia e, ao mesmo tempo, com uma necessidade infinita de TERNURA (a vida inteira ela nunca superará a “perda”daquela irmã que tanto esperara, a prima Frieda, com quem trocará cartas no final da história e que deixará a alguns leitores revoltados; a outros, dilacerados; e, quem sabe, a alguns tantos, entediados). Quem melhor do que um esbanjador de si mesmo, a clássica figura do MACHO-VIRIL-PREDADOR (tão exaltada em uma sociedade machista) para encantar uma menina tão sedenta por afeto e proteção?Pois é. Mas o “homem dos sonhos” se mostrará exatamente o oposto, provocando a morte do primeiro filho; e, como era de se esperar, tornando-se um grande risco à integridade física de Rebecca e do filho que veio a nascer (é claro que, numa daquelas ironias, foi “homenageado” com o nome do pai-monstro).
Após a fuga, Rebecca escolherá o nome dito por um estranho ao encontrá-la logo no início da trama. E o seu filho, que jamais terá tempo de ser criança, será “rebatizado”, Zack. Assim como a Rebecca da Bíblia, nossa heroína também precisará fazer escolhas que definirão todo o seu “destino”; assim como o Zacarias , o nosso menino, cujos olhos são tão velhíssimos (segundo o seu professor de piano alemão), conseguia enxergar além daquilo que seria permitido não apenas a uma criança, mas a qualquer um que não tenha sido obrigado a compreender tão cedo que a escolha pela vida também pode ser uma espécie de morte.
Com uma aura de inacessibilidade e encanto que fascina a todos, Rebecca, ou melhor, Hazel Jones, encontrará um novo homem mais velho, idealista, músico, a quem se ligará em princípio por amor ao filho -que desejava tanto aquele pai- e com quem permanecerá ligada por toda a vida. Zack encontrará na Música desde a mais tenra idade a sua vocação -ou seria transmigração?
Num golpe de mestra, JCO nos mostra que até a identidade escolhida por Rebecca foi fruto de uma tragédia. A escolha do nome, arquitetada após a abordagem de um estranho, cuja aparência gentil e educada fez com que a nossa heroína o procurasse quando decidiu abandonar o marido violento, pensando mais na sobrevivência do próprio filho do que em si mesma, revela-se uma verdadeira farsa: o bom e gentil médico fingiu confundi-la com uma moça, mas o que não fora dito é que tal moça -assim como outras- fora assassinada pelo senhor de aparência tão afável, certamente atraído pela semelhança física que Rebecca teria com a vítima. Não encontrando aquele que, na verdade, desejava assassiná-la, Rebecca consegue ludibriar Tânatos uma vez mais.
Resumo da ópera: sim, o antissemitismo (ainda) existe; o machismo existe; a violência doméstica persiste; mas existe, também, o amor (com ênfase, aqui, ao AMOR MATERNO); a beleza (com ênfase, aqui, à beleza elevada ao ápice através da Música, com o poder de evocar o que há de mais profundo, inclusive laços familiares supostamente perdidos; a Música que faz com que uma avó volte a existir através do seu neto; a beleza das ideias, da filosofia, do poder que temos de questionar tudo o que nos cerca, que faz um avô terrível -será mesmo?- voltar a existir através do neto). Existe miséria, sim, existe; mas existe, também, a transcendência.
Conclua a leitura e ouça a “APPASSIONATA”. Sublime como a música é a escrita de JCO. E foi com reverência e lágrimas que fechei o livro.