Mito e realidade de Vargas

Mito e realidade de Vargas Claudio De Araújo Lima



Resenhas - Mito e realidade de Vargas


1 encontrados | exibindo 1 a 1


Tauana Mariana 31/01/2012

Mito e realidade de Vargas
Mito e realidade de Vargas

Busca-se neste ensaio [...] dizer a verdade sôbre um homem que marcou, com o sêlo de sua discutida personalidade, todo o último quarto de século da história brasileira. 11

Não a verdade abstrata e rígida [...]. Mas aquela outra, de índole propriamente pirandeliana, que é concreta, prática, numa palavra - existencial. 11

Depoimento de alguém, que, em 1930, iniciou sua carreira de psiquiatra em plena efervescência de uma transformação do regime, com a resultante subversão de todos os princípios que lhe haviam ensinado serem os verdadeiros princípios. 11

E decidiu estudá-lo [...] no sentido de uma avaliação histórica do processo que fixara o seu eixo aparente na pessoa de quem, a 24 de outubro de 1930, passou a simbolizar o poder civil na chamada República Nova. 12

[...] os homens que o destino entroniza no poder nunca são, de fato, a "causa" da fenomenologia política que parecem dirigir com a marca da sua individualidade. 12

Como no caso de São Francisco de Assis. 13

Ou como no de Hitler, que fez a entrada na cena do drama europeu no instante preciso em que o povo alemão se debatia sob o pêso do castigo que lhe infligira o tratado de Versalhes, esperando por alguém que encarnasse o seu desejo obstinado de uma recomposição material e espiritual da fôrça perdida. 13

[...] acabou adiante , depois de consolidado no poder, por imprimir sua concepção bélico-mística do mundo à alma do povo que criara , inconscientemente, as condições históricas do seu aparecimento. 14

Vargas também. 14

Êle fôra, de fato, o símbolo humano em que se hipostasiavam os princípios de um movimento que, em suas origens, pugnava por um programa de renovação política. 14

Mas o "efeito" dessa necessidade histórica de reestruturação, que as circunstâncias personificaram em Vargas, ultrapassou com o tempo a sua condição de simples efeito. E tornou-se a "causa" da mentalidade que se foi modelando no Brasil, à custa de um trabalho insidioso de replasmar a alma brasileira, até dar-lhe a forma aberrante em que hoje, desgraçadamente, ela se encontra. 15

[...] psiquiatria e psicologia. 15

[...] êle pertence ao grupo dos [...] donos de uma alma sempre enclausurada em egoística tôrre de marfim [...]. 15

E ora são frios, anestesiados, marcados por um embotamento afetivo, que vai da simples aparência de calma, matizada por um leve ar de ternura ou de ironia, até aos extremos de uma frieza que pode chegar à glacialidade cínica de certos psicopatas delinquentes. 16

Fechados dentro de um círculo de interêsses absolutamente à margem dos fatos que lhes são apontados pela realidade, à qual êles contrapõem o seu próprio eu, com uma tenacidade que só se disfarça quando os interêsses da coletividade podem ser aproveitados a serviço da suas conveniências pessoais. 19

Pelo o que os esquizotímicos são, desde que se encontrem em posição de mando, umas vêzes violentos e brutais nos impulsos de afirmação do seu fanatismo, outras vêzes friamente despóticos tranquilamente calculistas, capazes de uma inaudita maleabilidade diplomática, como nos casos de Robespierre, ou de Calvino, ou de Fouché. 19-20

Ou como no de Vargas. 20

Porque a personalidade do ex-ditador se enquadra, à perfeição, nos limites do temperamento esquizotímico. 20

Em Vargas, só o temperamento, pela faceta da fria capacidade de viver sem atritos pessoais entre os companheiros de representação, explica o principal motivo do qual foi escolhido para líder da sua bancada na Câmara Federal. 21

E também em função dêsse temperamento êle pôde continuar. 22

Continuar, durante quase um quarto de século, ao mesmo passo que, por sua vez, se tornava aos poucos a "causa" criadora dessa espúria mentalidade que hoje já se conservou, tácita e unânimemente, chamar de Getuliana. 22

Essa é a razão do presente livro, que é menos um retrato de Vargas do que um depoimento de especialista sôbre o caos moral a que conduziu a mentalidade getuliana. 23

A geleira e o vulcão

A marca fundamental da existência de Vargas é o seu destino solitário. 27

[...] tem de arrastar-se pela vida inteira escravizada à multidão, sem a qual êle jamais poderia atingir a sua verdadeira essência, que se resume tôda na ânsia de exercer o poder sôbre os outros homens. 27

[...] tôrre de marfim [...] 27

Por mais que se procure penetrar-lhe a profundidade da máscara, nada se vislumbra por trás do seu sorriso estereotipado. Aquêle sorriso inexpressivo que, de tão fixo, acabou por servir de motivo aos primitivos slogans da propaganda oficial. 28

Vargas é sempre frio. Frio até a glacialidade, mesmo em face de situações que acarretam violentas crises emocionais ao comum dos sêres humanos. E inclusive a certos sêres não humanos [...]. 30

Êsses fenômenos da "fatalidade biológico" não logram perturbar o saboreador matinal de chimarrão. 32

Vargas se conserva inalterávelmente "forte". 32

A ostrá-lo nos flagrantes de magnanimidade ou cordura, de confraternização ou simplicidade populista com que começa então a preparar a criação do mito em que, por aquêle tempo, a propaganda governamental já decidira transformá-lo. 33

Os desabafos nos discursos de improviso, que de tão ásperos, à vêzes tão violentos, levaram muitos críticos a dizer que Vargas mais parecia um líder fanático da oposição, do que o chefe de um govêrno sistemáticamente amparado por fiéis e dedicadas Fôrças Armadas - talvez um tanto exageradamente fiéis. 35

Volta-lhe então o sorriso glacial. O célebre sorriso estereotipado, que continua, continua sempre. E às vezes se alarga, cresce, desabrocha-se, até desintegra-se no estouro de uma daquelas gargalhadas, tornadas famosas, com que saboreia algum "cuento" cujo sal se destine a condimentar os aspectos ridículos, grotescos ou estúpidos de algum dos mais fiéis e dedicados auxiliares. 38

Vargas sorri sempre. 39

Nos momentos de maior dramaticidade ou angústia da vida brasileira, seja na paz ou na guerra - excluídos, é claro aquêle em que esteja em jôgo a mais longínqua possibilidade de perda do Poder - êle continua a cumprir, calmo e sorridente, todos os prazeres da vida vegetativa. 39

[...] vigilância canina de Gregório [...]. 39

Bebe ainda melhor, embalado pelos ditirambos que o transmissor de rádio lhe reproduz aos ouvidos durante a "Hora do Brasil". Ainda que a sêca destroce um pouco a cada ano, as populações do Nordeste. 40

Ou que ali bem perto dêle, em plena capital da República, o povo tenha a garganta ressêca e morra de tifo porque o seu risonho govêrno permitiu que uma firma palaciana roubasse os milhões com que deveria dar água ao Rio de Janeiro. 40

Feiticeiro ou aprendiz?

A oratória de Vargas - para só a confrontar com a dos mais expressivos chefes autoritários de sua época - é a própria antítese da técnica oratória de um Mussolini. 47

Também faltava a Vargas o arrebatamento endemoniado da oratória de Hitler. Porque em sua alma, sempre glacial, não caberiam jamais os arroubos patéticos com que o fuehrer buscava impregnar de seu misticismo diabólico as massas que o Tratado de Vesalhes enchera de ódio. 48

[...] ideologia nazi-fascista, a que Vargas ostensivamente se inclinava. 49

Através de um quarto de século, e independentemente do figurino predileto ao paladar do seu escriba do momento, Vargas foi um só como orador político. 49
Prolixo [...]. Impreciso [...]. Sinuoso [...]. E, acima de tudo, frio. Daquela frieza, que era a marca registrada da sua maneira-de-ser. 50

De preferência, sempre e quanto possa, é calado. Avaro de palavras. Mais preocupado em ouvir do que em falar – um aspecto a mais, afinal, da sua vocação para pouco dar e tudo receber. 52

Nessa atitude, sua técnica principal é perguntar. 52

Preferia calar e ouvir. 53

Dessa tentativa sumária de interpretação dos mecanismos intelectuais de Vargas, um tríplice esquema pode deduzir-se para levar adiante a análise da sua inteligência. 54

Primeiro, no âmbito das orações escritas, o elemento psicológico que domina a atividade discursiva é a sua frieza afetiva, que lhe permite falar longamente, para pouco dizer. 54

Depois, nos improvisos, denuncia-se o deslocamento da sua afetividade, do pólo da anestesia para o da hiperestesia, do extremo glacial para o extremo vulcânico, do “ice-berg” para o “geyser”, revelando um lado de sua alma que, por só se mostrar raramente, é excluído e omitido pela tendência desmemoriante da análise humana. 54

Do ponto de vista própriamente intelectual, qual o núcleo fundamental do comportamento de Vargas?

Desde que se aprofunde o sentido de tal indagação, o observador será fatalmente levado à dedução de um denominador comum a que se podem reduzir a forma, a intensidade e a cor de todos os processos da sua capacidade de elaboração psíquica: a escassez de imaginação. 54-55

Outro aspecto da sua inteligência, [...] é revelada através de toda a sua carreira política pela incapacidade, que em Vargas foi irredutível, de criar-se uma ideologia. 57

Como compreender, porém, um ditador sem ideologia? 57

[...] um ditador sem ideologia é como um catequista sem fé. 58

Porque a verdade, a justa verdade, é que esse maquiavelismo a ele atribuído não resiste a uma análise imparcial. 59

Luiz Carlos Prestes [...] ao ex-ditador – “um depravador de consciência” [...]. 60

“Depravador de consciências”, Vargas, ou pura e simples aproveitador oportunista de consciência com a vocação inata para se fazerem depravar? 61

Não foi Vargas que teve a idéia de reunir seus discursos. De ordená-los. Enfaixá-los em livros. 62

[...] Vargas, ditador sem imaginação. 64

Todo o suposto e lendário maquiavelismo de Vargas se reduz, na verdade, a uma técnica – simplista e primária – de escolher entre um certo número de soluções que lhe apresentem em determinado momento. 64

De quanto ficou dito até aqui sobre a personalidade de Vargas, uma premissa parece logo se impor: a predominância dos aspectos negativos sobre os positivos, qualquer que seja o ângulo em que se coloque o observador. 69

Também no domínio da inteligência, foi a uma negatividade que se reduziu o denominador comum da sua maneira-de-ser: a pobreza de imaginação, em contraste co a lendária capacidade de maquiavelismo, que sempre lhe foi unanimemente atribuída. 69


Também no domínio da inteligência, foi a uma negatividade que se reduziu o denominador comum da sua maneira-de-ser: a pobreza de imaginação, em contraste co a lendária capacidade de maquiavelismo, que sempre lhe foi unanimemente atribuída. 69

A frustação física

Ao longo de toda a existência de setenta e tantos anos, Vargas nunca logrou, decerto, superar integralmente o drama de sua inferioridade corporal. 70

Através da sua existência inteira, o drama de Vargas terá sido sempre o mesmo. Aquelas pernas excessivamente curtas, que os jornais cinematográficos realçavam, quase sadicamente, ao focalizar certas cenas da entrega de credenciais, onde êle surgia ao lado de algum embaixador corpulento, numa atitude em que seus pés, incapazes de tocar o chão, provocaram sempre uma invencível hilaridade. 70

Com tôda certeza, as pernas de Vargas devem ter marcado fundamente o seu comportamento. E talvez hajam sido o fator inconsciente que norteou tôda a sua ânsia de perpetuar-se no Poder. 71

E se para o Brasil, o 1930 assinalava o transcendente momento da substituição de uma tutela econômica por outra, para Vargas, pessoalmente, marcava a um só tempo o primeiro grande triunfo de sua carreira política e a primeira grande superação do drama de suas pernas curtas. 72

E certamente, o biógrafo de amanhã, que há de ser, a um só tempo, psicólogo, historiador e sociólogo, terá de encarar a figura de Vargas sob esses múltiplos aspectos. de modo a poder separar o que pertence, na revolução de 1930, aos interêsses oculto das fôrças econômicas, aos impulsos românticos dos que foram aparentemente os seus fautores, e aos problemas puramente anímicos - secundaríssimamente históricos - de quem para todos os efeitos incarnou a chefia do movimento. 74

Depois, foi em 1937. 74

E como foi Vargas capaz de "viver" o castigo infligido ao espicaçador dos complexos de sua frustração física? 77

Friamente, e em dois tempos.

Primeiro: escolhendo [...] o "outro" candidato, o feio José Américo. E só por êsse fato de ser feio. 77

Segundo: deixando-se envolver por um grupo de homens [...] que lhe deram a solução impossível à sua inventiva. 77

Para derrotar o elegante e britânico Armando de Sales Oliveira, Vargas marchou rumo à eternização no Poder, trepando sôbre um ardor que sete homens feios carregavam [...]. 78

Através de tôda trajetória política de Vargas, querendo ver bem as coisas, vislumbra-se uma sistemática hostilidade, ora aberta ora embuçada, contra os homens que houvessem recebido da natureza, do sangue ou da educação, aquêles dons que eram a antítese da tragédia que carregava, da sua inferioridade física. 83

E se êsse exemplo, não bastar, como esquecer, a despeito de tôdas as teatrais demonstrações em contrário - sobretudo recentemente, por ocasião do demagógico entêrro em São Borja - a sua sutil mas evidente animosidade contra o Sr. Oswaldo Aranha, que foi sempre odiado por Vargas? 84

A frustração militar 85

E Vargas, fronteiriço típico e inconfundível, não poderia escapar a essa fatalidade regional, que sempre se exterioriza, com maior ou menor grau de sublimação, em cada gaúcho da fronteira, seja qual for o rumo que a sorte lhe imprimir à existência. 86

Seja o do herói de fato [...]. 86

O do soldado [...]. O do espadachim rebelado, meio místico e meio sanguinário, que organiza uma coluna para palmilhar o sertão [...]. O do peão [...]. O do bacharel romântico [...]. O do tribuno arrebatado [...]. 87

Ou enfim o do gaúcho vulgar – nem sublimado, nem realizado, apenas transplantado para a metrópole – escravo de um primarismo [...]. 87-88

24 de outubro de 1930. 88

Essa data marca a primeira grande desforra de Vargas contra a mágoa de não haver alcançado a honra de um galão legítimo. Galgando poder, ele se realiza em cheio. 89

Todos os anos, quase todos os meses, um novo ato de superação vem neutralizar-lhe a amargura de não haver sido soldado. 90

Para Vargas, a IIª Grande Guerra encerra algo mais do que a simples tomada de posição num conflito mundial. Muito mais, porque é a oportunidade de compensar, em maior profundidade, o núcleo de sua vocação militar frustrada. 91

O biógrafo e o historiador de amanhã, quando tiverem de recompor a vida de Vargas e esquadrinhar os acontecimentos políticos que marcaram a vida do Brasil nêsse triste período de ameaça de domínio totalitário do mundo, terão de apontar os extremos de imoralidade a que Vargas, na volúpia de compensar os seus recalques, foi capaz de permitir que arrastassem a Nação. 92

A frustração amorosa

Há como uma espécie de reconjugação semântica da palavra “posse”, que passa a oscilar entre o ato de “empossar-se” e o ato de “possuir”, no específico sentido erótico do termo. 95-96

Pois Vargas, desse ponto de vista erótico, é a negação do brasileiro típico. Dele nada se sabe, com segurança, capaz de integrá-lo na atitude brasileira do sultanismo dos poderosos. 96

O fato incontestável, porém, é que Vargas, também no que toca ao calor de uma companhia feminina, foi sempre um solitário. 97

Sua alma fria – polarizada na simples capacidade de receber e jamais dar um pouco de si – não lhe permitiria nunca os transbordamentos de ternura que o cesário Mussolini dava a Clara Petacci, ou sequer os que Eva Braun logrou arrancar da alma dura de Hitler. 98

Vargas só teve em toda a sua vida um grande, único, sincero, absoluto amor: o Poder. 98

Pelo amor do Poder, ele viveu, lutou, sofreu, reagiu, mentiu, traiu. E muitas vezes, mesmo sem o desejar expressamente, até fez o bem. 99

Trajetória de um caudilho

A chegada de Vargas ao poder [...] apenas ele próprio a encarava como ponto de partida de um ciclo que só deveria encerrar-se com a morte. 103

Só ele, Vargas, tem o conhecimento íntimo de que, além de frio, tranqüilo de imaginação, é também orientalmente preguiçoso. Apático. Inativo. Que só se mexe quando o empurram. E só escolhe quando há o que escolher, com vantagens para a sua ambição. 106

É a época em que o “Gêge” principia a aparecer nos palcos de revistas da Praça Tiradentes, e na letra das canções carnavalescas, que falam na conveniência de “deixar como está para ver como é que fica”. 106

Direita ou esquerda. Liberalismo ou reação. Democracia ou Ditadura. Pouco importa. Todos os rumos lhe parecem propícios e aproveitáveis para os seus interesses. 107

Qualquer que seja a sugestão do interlocutor ou do conselheiro do momento, encontrará sempre o mesmo sorriso inexpressivo – não enigmático – frio, distante, como o de quem não se preocupa com as mesquinhas coisas de que lhe falam, porque só enxerga muito além, lá no infinito, a única coisa que lhe fala à alma: o seu Poder! 107-108

Nada consegue atravessar-lhe a glacial carapaça. 108

1937 assinala o ano em que as ideologias totalitárias atingem o auge do seu prestígio. E os representantes de tal mentalidade no Brasil, por esse tempo, já se estão familiarizado com os prodígios de eficiência da nova arma com que ela pretende conquistar o mundo. Porque, agora, a Propaganda vai ser o instrumento de modelação do pensamento humano. 109-110

Baseada nas ultimas conquistas da psicologia, na aplicação prática das pesquisas sociológicas, no aproveitamento dirigido das técnicas de transmissão, levados quase ao milagre da difusão da palavra e da imagem, ela surge nesta altura do século XX com um poder quase infernal. 110

E já não pretende apenas despertar a atenção do homem para os sortilégios da publicidade comercial. Quer ir mais longe. Muito adiante. Até aos limites de plasmar e replasmar o pensamento humano. 110

Essa nova arma de conquista, que é a mais diabólica de todas, porque visa em última análise a descerebrar o homem, a resumi-lo no autômato que até então só existia em raras as novelas fantásticas, explora a um só tempo o ódio e o amor. O amor dos chefes pelos súditos dos quais eles só exigem, em troca do amor que em forma de promessas de pão e segurança lhes dão, que também dêem o seu ódio àqueles que eles odeiam. 110

Começa então, no Brasil, a criação do mito. Independentemente de quem foi escolhido para encarná-lo. 110

Então, a Propaganda já o aponta, não mais como o “xuxu” insípido e inexpressivo dos primeiros tempos da revolução. 111

Agora, ele é o dono de uma inteligência maquiavélica, enaltecida através de anedotas “dirigidas”. 111

Pai dos pobres, aos quais ele sacrifica todos os instantes da sua vida. Menos aqueles, já se vê, em que, para assegurar a eternidade do Poder, não deve enxergar o alcance dos torpes golpes que os demônios do mercado negro lhe impõem sob a forma de certos decretos-lei que, afinal, se reduzem a verdadeiras sentenças de mortes coletiva, pela ameaça da fome ulterior que encerram. 111

Anjo tutelar das crianças, que devem formar nas paradas do “dia da raça”, se a avitaminose ainda lhes permitir estar de pé longas horas a fio para exaltar o Chefe. 111

Protetor magnânimo dos indígenas [...]. 111

Defensor fiel dos princípios católicos [...]. 111

Mas tudo isso ainda é pouco. Pois se Mussolini era dramaturgo. E Hitler pintor, de taboletas mas também de quadros. Urge construir então o lado intelectual do mito. E para tanto, nem é preciso recorrer a uma violência como ponto de partida. 112

A arregimentação é rápida e perfeita. Tanto mais que os maquiavélicos arquitetos do mito contam com o espírito de colaboração de um conceituado editor. Com a superior compreensão da maioria dos escritores [...]. 112

Que o chefe do Estado Novo, nessa altura da modelação totalitária do pensamento brasileiro, já está consagrado como um escritor [...]. 113

Há que assegurar-lhe uma condição que se coadune simbolicamente com a idéia de eternidade do seu Poder. 113

É preciso fazê-lo imortal. 113

A “ilustre companhia” deslumbra-se diante dessa inspiração que lhe proporcionará, a um só tempo, a suprema honra de incluir o mito entre os seus membros, e a vantagem de conquistar alguém que lhe pode conceder favores do maior alcance para a sua grandeza patrimonial. 113

Afinal, pouco tempo depois, uma vez consumada a violência indispensável contra os velhos estatutos, ei-lo “imortal”. 113

Mas os construtores do mito são insaciáveis. Querem algo mais. Algo que em si mesmo tenha qualquer coisa de transcendental. 113

E num passe de mágica do seu Departamento de Propaganda, surge Vargas, um dia, nada mais nada menos do que como redescobridor do Rio Amazonas. 114

E as oficinas do mito não dormem. Trabalham noite e dia. Em todos os setores. Por equipes. E por especialidades. Cada qual aperfeiçoando um método e propondo uma nova técnica de sugestão. 114

Que continuem os retratos a ser espalhados e impostos, nos múltiplos tamanhos e feitios, por variadas latitudes e longitudes, pelos mil cantos e recantos do País. 114

Que também não o chamem mais pelo nome de Getúlio, que ficara identificado com aquela outra fase do “Gêge”, do “Xuxu”, do sorriso inexpressivo e estereotipado. E que o chamem antes de “Vargas”, que encerra um sabor mais caudilhesco, mais ao molde dos primeiros conquistadores ibéricos, cujo sangue deve correr-lhe nas veias. 115

Que os poetas componham odes. Os artistas sugiram símbolos. Os humoristas inventem trocadilhos. Tudo para imortalizar a sua bravura, o seu gênio e a sua arte de dar rasteiras. 115

O mito vai crescendo. Ganhando força, hora por hora, para consolidar-se e convencer. [...] o Brasil inteiro principia a acreditar no mito. A cada vez mais mitificar-se o mito, à vezes até sem o querer. 116

De 1937 a 1945, trabalha-se o mito. 117

E o mito deixa-se construir. Não porque já acredite em si mesmo, pois, só na terceira fase, a ele próprio chegará essa convicção que já avassalou o Brasil inteiro. Mas porque acha que isso lhe garantirá a eternidade do Poder. 117

[...] ele já não é mais passivamente, o mito em que se deixara transformar, para sobreviver. Agora ele próprio foi contaminado, invadido, devorado, modelado pela propaganda. E considera-se, de fato, um mito. Mais que isso – o Mito. 118

No pleito de 1945, o Brasil o elege, simultaneamente, deputado e senador por várias unidades da Federação, e quando não o escolhe pessoalmente, cumpre as suas ordens eleitorais em relação aos candidatos por ele indicados. 118

O Brasil se ajoelha. Itú se transforma em Meca. A partir de então, Vargas nada precisa fazer, maquiavélicamente, para retornar ao posto de onde o Exército o apeara. 119

Crendo apenas na imortalidade de seu mito e só a essa eternidade aspirando, Vargas esqueceu-se [...] de construir dia a dia, através da idade madura e, sobretudo, naquela idade em que se apagam progressivamente as fronteiras entre a tarde e a noite da existência, uma concepção do mundo, da vida e do eu, que lhe servisse no momento supremo. 120-121

Vargas não pode aprender a difícil arte de envelhecer. E pelo simples motivo de que foi sempre um solitário. 121

[...] a verdade é que Vargas morreu sem um amigo. 122

A solidão de Vargas era como uma fatalidade. Pode-se mesmo afirmar que ela principiou a atingir o auge, justamente – e paradoxalmente – quando afinal se concretizou o mito em que os corifeus do Estado Novo decidiram converte-lo. E daí por diante, não mais parou o processo da sua “rockefellerização”. 122

Vargas foi condenado pelo próprio triunfo à mais trágica solidão. 123

Vargas viveu e morreu só. 123

O navio fantasma e o mar de lama

De fato. Era sobre um mar de lama, extenso e insondável, que se balançava o seu barco, ao cabo de quase um quarto de século. 127
comentários(0)comente



1 encontrados | exibindo 1 a 1


Utilizamos cookies e tecnologia para aprimorar sua experiência de navegação de acordo com a Política de Privacidade. ACEITAR