Lucas 17/11/2019
Uma obra que encanta mais pela narrativa do que pelo que ela conta
Leite Derramado foi o quarto romance do compositor, músico, dramaturgo e escritor Chico Buarque (1944-), lançado em 2009. Dentro das suas menos de duzentas páginas, são vários os traços que fazem deste um livro peculiar, seja no mau ou no bom sentido.
A narrativa se divide em 23 capítulos, que funcionam mais ou menos como uma coletânea de crônicas sobre a vida de Eulálio Montenegro d'Assumpção, centenário indivíduo que está numa cama de hospital e que disseca suas memórias (não fica claro como ele faz isso) de um jeito confuso, mas que acaba sendo inerente às condições do idoso enfermo. Os antepassados de Eulálio eram portugueses, da alta sociedade do Brasil Imperial, com o pai dele sendo descrito como amigo íntimo de Dom Pedro II. Tendo uma vida abastada, o protagonista se apaixona e se casa com Matilde, de longe a personagem que mais abriga tempo na narrativa, seja em descrever sua aleatoriedade como pessoa, seja para ilustrar a relevância que ela exerce na vida do enfermo.
Os 23 capítulos não são dependentes entre si, daí o caráter nítido de que se tratam de crônicas. Em todos eles, o narrador exprime seus sentimentos para com a família, sem se ater a datas ou linhas cronológicas. Mas ao montar a narrativa desse modo fragmentado, Chico Buarque acaba por dimensionar a caráter das "elites" e sua relevância ao longo do fim do século XIX e por todo o século XX. Se, em muitos momentos dentro desse período, conturbado para a história do Brasil, a classe dominante era vista como um elemento de comando dentro da estrutura social, em outros essa mesma classe era invadida por tipos de classes ditas inferiores, provocando desse modo muitas quebras de paradigma conservador que eram o cerne desse estrato social na qual Eulálio sempre se encaixou.
O leitor desavisado pode achar que esse mecanismo narrativo tenha sido um traço da militância de Chico Buarque, sempre com vieses de esquerda e alvo de dezenas de rótulos ao longo dos anos. É inegável o seu apego a estes ideais, mas isso não explica seu tratamento com a "elite" em Leite Derramado. Na obra, Chico trata das transformações que essa classe superior teve que passar ao longo das décadas para manter sua relevância, não se ocupando necessariamente de tratar essa "elite" como uma fonte de malefícios ou futilidades (até porque o autor esteve longe de ter uma vida pobre quando criança ou adolescente). As nulidades de muitos elementos da classe alta são sim representadas, mas não com o intuito expresso de serem criticadas.
Na verdade, tudo isso sucumbe ao melhor traço de Leite Derramado, que é a forma peculiar de escrita. Inicialmente, o texto de Chico Buarque causará confusão, pois os relatos são misturados, não há um fluxo de pensamento contínuo que interligue dois capítulos seguintes, tampouco ordem cronológica. A edição é diagramada com muitas margens nas páginas, fazendo a leitura fluir com muita rapidez (Leite Derramado pode ser lido de uma "sentada" só). Não há nenhum diálogo explícito, nem parágrafos; o texto vai sendo "jogado".
Tudo isso pode simbolizar um caos narrativo que torna o livro desinteressante, mas aí é que reside a genialidade do autor. De fato, a falta de cronologia pode confundir leitores menos imaginativos; o texto é jogado, mas no colo do leitor, com delicadeza, sem tornar o livro cansativo em nenhum momento. Há uma poesia nas entrelinhas que nada tem de fantástico ou absurdo, mas que é capaz de encantar. Na opinião do autor da presente resenha, inclusive, estes traços de leveza da narrativa e a maneira com que ela é escrita superam de longe a trajetória do protagonista, que nada aparenta de especial ou heróico.
Ler Leite Derramado vale justamente por isso, pela poesia implícita sem ser forçada ou absurda. Isso explica porque maiores detalhes que Eulálio narra da sua vida são aqui omitidos (e são muitos). Chico Buarque certamente não quis expor ensinamentos, explorar os conflitos de classe, tampouco "doutrinar" seu leitor, mas o que ele conseguiu foi encantá-lo por meio de uma narrativa leve, que, mesmo que incapaz de transformar ou ensinar algo, traz vários momentos dignos de lembrança.