Marcelo Leite 14/01/2024
E que jornada!
Um homem centenário está internado em um hospital. Seu nome é Eulálio Assumpção. Membro de uma família aristocrática brasileira.
Narrado em primeira pessoa, conhecemos sua história, assim como fleshs sobre a vida de até três gerações antes dele, até quatro depois. E a história é contada como se tivesse fazendo a descrição para registros escritos por uma enfermeira, que por vezes é confundida por sua filha, Maria Eulália.
A descrição dos eventos não é construída de forma cronológica. As histórias são contadas conforme lhe vem a lembrança. Mas isto nem de longe atrapalha o ritmo da leitura. Pelo contrário, aguça o tempo todo a curiosidade do leitor.
E é desta forma que vamos conhecendo a origem portuguesa e próxima da família real que aportou no Brasil no começo do século XIX. As contradições de um avô fazendeiro que é citado como "defensor da causa dos ex-escravizados", e de seu pai, influente senador da República Vela, vítima de um crime bastante inusitado.
A profissão de Eulálio não é bem explicitada. Mas chega-se a comentar que trabalhou como assessor para um político colega de seu pai enquanto jovem.
O amor que sentia por Matilde -filha adotiva de um outro parlamentar da época. E a dor da sua ausência também são coisas que marcam bastante a leitura. Desde o sentimento de culpa por desejá-la sexualmente durante as missas, quando se conheceram, seu casamento a base de crítica por seus familiares, até as suas constantes suspeitas de traição e seu posterior desaparecimento. Algo que marcará toda a sua vida .
Outra referência que vale citar é a sua filha Maria Eulália. Que partir de sua idade adulta, começa a desencadear uma série de eventos que leva a vida de Eulálio a ruína tanto econômica quanto social. O nascimento de seu neto, bisneto e trineto aprofundam e aceleram este processo.
Está fase da vida que marca a decadência financeira e do próprio nome, transmite ao leitor uma sensação difusa. Hora por gostar de ver um aristocrata em apuros, outra por pena, diante de tantas atribulações sofridas graças as más escolhas ou picaretagens de seus entes.
É possível dizer que os personagens são marcantes e que apesar do livro ser pretensioso no sentido de explorar tantas gerações em tão poucas páginas, nada fica sem um bom desenvolvimento, nem com pontas soltas. E sobre eles é notável a repetição do nome "Eulálio" em todas as gerações. O que contribui para marcar a trajetória da família Assumpção, assim como, uma possível influência de Gabriel Garcia Marquez em Cem anos de solidão.
Outro autor que suspeito ter contribuído como referência para a forma que a história deste livro foi contada é de Machado de Assis, em dois aspectos, os sarcasmos de como o cotidiano aristocrático - às vezes são expressos - e as suspeitas em cima da parcialidade da narrativa da qual podemos reparar.
Em meio a tudo isso, Chico Buarque consegue discutir o racismo, machismo, sexualidade, preconceito de classe, a famosa "carteirada" ao usar o nome para conseguir favores e privilégios. Comportamentos incutidos na sociedade brasileira, da qual a nossa aristocracia faz muito bom uso. Mas apresenta tudo isso em um tom que não é nem clichê, panfletário ou monótono. Pelo contrário, é possível dar muitas risadas durante várias partes.
Leite Derramado é um perfeito retrato da elite brasileira. E que é dado um tremendo castigo no fim. Talvez o castigo que mais poderia machuca-los.
Coitado do velho Eulálio. Sobrou pra ele!