Jim do Pango 06/07/2010
Um leve espírito
Leite Derramado faz jus às alusões unanimemente positivas que recebeu da crítica literária: é, de fato, extraordinário. É belíssimo.
Antes desse livro, o escrito Chico Buarque não havia me despertado grande interesse. Por nenhum motivo específico, naturalmente. É que Se chega a uma fase da vida em que você descobre que (infelizmente) não vai conseguir ler tudo o que quer, então é natural que haja uma seleção maior das obras e escritores. Não bastasse, é justo nessa fase que também se descobre que é preciso volver à algumas obras do passado, que são sempre representadas por uma vasto acervo, cada vez mais vasto à medida que os anos se acumulam. Por essas e outras razões permanecia ignorando o Chico Buarque.
Foi então que, depois de ouvir e ler um pouco a respeito desse livro específico, de repente, ele começou a ganhar forma em minha estante. Ele se materializou ainda mais e quase ficou palpável ao lado daquele meu velho Alexandre Dumas quando chegou uma indicação da pessoa mais sensível que conheço (minha namorada). Esse último acontecimento já me dera motivos suficientes para o Chico Buarque tomasse a dianteira na ordem de leitores que me aguardam na estante, porém, faltava ainda uma última cartada para que o livro fosse parar em minhas mãos (e não estou me referindo ao fato de tê-lo ganho justamente de presente no dia nos namorados, isso naturalmente ajudou, e muito, mas não foi isso); essa última cartada de que faltava, que para atingir o mesmo efeito posso bem nomear de uma última ponte que me ligaria ao romance, veio de um curto raciocínio lógico, que tento reproduzir agora:
Pensei em “Tanto Mar”, a belíssima canção em que o Chico Buarque trata da Revolução dos Cravos. Refleti que é espantoso o fato de o Chico conseguir dizer tanto sobre um evento histórico tão importante em tão poucas linhas, em tão poucos versos e ainda emocionar. Foi a partir dessa premissa que me questionei: o que alguém como o Chico – que consegue em um verso de uma canção registrar tanta coisa bonita e passar tanta emoção – faria escrevendo um livro?
A resposta, agora me parece ainda mais evidente, já estava presente na aceitação da obra pela crítica especializada. A resposta estava ali e foi exato o que pude confirmar nas pouco menos de duzentas páginas em que o velho senhor Eulálio Montenegro D’Assumpção narra suas memórias.
E ele fez esse livro que faz sorrir em muitos momentos e, portanto, diverte.
Fez esse livro que desperta certa melancolia em outros e, portanto, emociona.
O protagonista em dado momento diz que a sua Matilde tinha “um espírito leve”, como a dizer que ela não guardava rancores por muito tempo, mas é o próprio protagonista que revela o espírito mais leve desse romance na maneira estóica com que narra as agruras de sua família.
Ademais, são tantos e tão precisos os relatos de um tempo que já não existe, e que o próprio autor não viveu, que deixa a forte impressão que a obra tem bases sólidas, erigidas em detida e séria pesquisa.
O curioso é que, antes do fim, voltei a pensar em “Tanto Mar” quando vi o Eulálio dizer: “[...] O bar fechava ao amanhecer, e eu ia dormir um pouco mareado. Vedava a escotilha do meu camarote de popa, para não ver o acúmulo de oceano que mais e mais me afastava da minha mulher.” (p. 58).
Esse “acúmulo de oceano” me soou como: “Sei que há léguas a nos separar: tanto mar, tanto mar; sei também quanto é preciso, pá, navegar, navegar.”
Li o livro de um só golpe, como sua composição exige. Antes de voltar a ele, irei atrás de outros títulos do escritor Chico Buarque, é evidente, mas fato é que pretendo voltar e reler. E Dessa vez, pretendo fazer como se deve: com vigor e vagar.