Marcelo217 03/09/2023
A queda do engenho de cana de açúcar
Finalizando a trilogia da saga de Carlos de Melo e o engenho Santa Rosa, o volume mais "burocrático" da história, cheio de conflitos pessoais e a dinâmica fracassada da personagem enquanto senhor de engenho.
O livro é uma grande metalinguagem onde a personagem com pretensão frustrada de escrever um livro sobre a real vivência em um engenho, não o faz, mas acaba sendo feita pelo autor conforme a história é desenvolvida, uma sacada genial! Na última metade do livro, inclusive, é toda destinada aos pormenores, trâmites e o funcionamento do engenho. Tudo é retratado de forma bem detalhada, o que demonstra um conhecimento íntimo por parte do autor.
O que se inicia no primeiro volume com uma prosperidade na sociedade harmoniosa coexistente entre o engenho Santa Rosa e os seus vizinhos se transforma em competição desleal e uma violenta rivalidade. A ideia de vocação é colocada como um impasse em que Carlos fica dividido entre a herança familiar e o seu questionamento em ser um senhor de engenho competente. A vida adulta desmotivada, solitária, a formação sem perspectiva e a instabilidade emocional são algum dos elementos responsáveis por uma falta de pulso e uma passividade diante do regimento senhorial.
Carlos, já adulto e com ensino superior, ao retornar ao engenho apresenta um comportamento dúbio, libidinoso, inconsequente, ao meu ver, sendo apenas um reflexo das práticas de seus parentes. O casamento é uma opção cogitada por ele a todo momento como uma forma de saída desse estado confuso, melancólico e carente. Durante a trilogia o autor experimenta o "ciclo das Marias (Clara, Luísa, Alice)": em diferentes momentos, nos três livros, a personagem Carlos experimenta o amor em formas diferentes, causando instabilidade emocional em todos eles.
Em aspectos sociais, a corrupção, a justiça enviesada e a dinâmica envolta nos negócios dessas fazendas mostram como as relações de poder e as alianças políticas são necessárias para a sobrevivência econômica. Essa decadência me lembrou muito a narrativa de Graciliano Ramos, amigo do autor, em "São Bernardo".
O motivo da falência do engenho de Carlos abre-se para vários questionamentos: a sensação de impotência e a falta de vocação; uma possível demora na tomada de atitude; a mudança nas relações senhoriais da pós escravidão; o processo de modernidade na automatização do engenho ou simplesmente o fim do ciclo do plantio em um caso isolado.
"Banguê" é um relato literário, mas em teor extremamente real. As informações trazidas são detalhadamente fieis o que demonstra um conhecimento impossível de ser adquirido por suposições criadas na imaginação de José Lins do Rego. A narrativa em conjunto dos três livros mostra a profundidade na vivência de um herdeiro do velho coronelismo nordestino no início do século XX. A personagem Carlos me despertou empatia e antipatia em vários momentos, mostrando assim, uma construção humana e falha em sua constituição. A trilogia reguiana é cativante, imersiva, fielmente detalhada e uma grande contribuição para a história e para a literatura brasileira que, com certeza, merece mais atenção e prestígio por parte dos leitores. José Lins do Rego, pelo que percebi construiu uma forma de multiverso em suas obras que se encontram em certos momentos (Ricardo de "O moleque Ricardo" e a menção da expressão "Fogo Morto") o que mostra a expansão futura da temática em suas obras. Pretendo futuramente voltar à sua obra e conhecer ainda mais esse universo tão bem escrito. A trilogia do ciclo da cana de açúcar que me foi tão bem recomendada é, comprovada agora por mim, um clássico literário da literatura brasileira.