Jacque Spotto 14/07/2020
Tornou-se um dos meus favoritos!
Aquela leitura que eu fechava o livro a cada capítulo e falava: "Uau!". "O filho de mil homens" é aquele livro que nos dá uma ponta de esperança para tudo que passamos em nossas vidas, que nos faz sentir uma felicidade apesar de certos momentos acharmos que não terá mais jeito, que é só aceitar e pronto. Bem, pelo menos foi essa a sensação que tive, pode ser que para outras pessoas um sentimento diferente aflore na leitura, pois posso dizer que esse livro trata de tantos assuntos que meus marcadores acabaram porque marquei praticamente todo o livro rsrs.
Esse é o segundo livro que leio de Valter Hugo Mãe, o primeiro foi "O paraíso são os outros", e por aí ele já me ganhou pela escrita que é simples e ao mesmo tempo te toca de uma forma muito delicada e poética.
A história do livro tem como o personagem principal, um pescador chamado Crisóstomo, e sinceramente nem sei se posso classificá-lo como principal, pois há tantos personagens interessantes que permeiam pela vida desse pescador que chega a ser uma pequena injustiça somente ele ser o protagonista. Crisóstomo é um pescador, que mora na beira da praia, já com 40 anos não tem um amor e também nenhum filho, e essa falta de um filho que lhe deixa um grande vazio em sua vida. Ele percorre os lugares atrás de uma criança que ele possa cuidar, e um dia ele encontra, um garoto de 14 anos que perdeu seu avô e que era a sua única família, a partir desse momento a vida de Crisóstomo muda radicalmente, com o tempo outras pessoas também passam a fazer parte dela e de seu filho.
"O Crisóstomo começou a pensar que os filhos se perdiam, por vezes, na confusão do caminho. Imaginava crianças sozinhas como filhos à espera. Crianças que viviam como a demorarem-se na volta para casa por terem sido enganadas pela vida." p. 20
Nos primeiros capítulos há uma semelhança com um livro de contos pois praticamente cada capítulo tem uma história e personagens diferentes, mas logo esses personagens passam a se encontrar e a história de cada um se funde com as histórias dos outros personagens.
Há momentos na vida de cada um que o escritor retrata situações que certamente é muito comum, principalmente em locais mais interioranos. Não há uma época explícita em que a história se passa, o que também não é necessário para a sua compreensão. Cada personagem tem uma história de vida marcada por preconceitos, indiferença, solidão, e a que está evidente em todas: a falta de compreensão por parte da família sangüínea, vemos que quem realmente aceita o outro por suas atitudes, escolhas e por serem eles mesmos são os que não tem seu sangue, são as famílias por escolha e não por traços de linhagem.
Uma dessas personagens que transformam a vida de Crisóstomo é Isaura, filha única de um casal e desde adolescente prometida a um filho do vizinho de sua família, porém Isaura acaba que se deita com seu prometido ainda adolescente e seus pais descobrem, foi umas das situações mais humilhantes que li, toda a fúria e desprezo da mãe com ela e também a indiferença e descaso de seu namorado faz com que Isaura passe os anos perdendo o amor a si mesma, como se ela fosse apenas um ser sem a possibilidade de amar e ser amada.
"Enjeitada e diminuta, a Isaura envergonhava-se de ter um dia oferecido tudo ao amor, mesmo sabendo que o amor era longe de bom, mesmo sabendo que era sexo e espera, a Isaura sentia que esperara demasiado e por ilusão, por estupidez". p.59
O amor nas vidas de alguns personagens está associado ao sexo mas não como uma forma boa de cumplicidade e de entrega, mas como uma necessidade do outro, uma obrigação ou a sobra que lhe restou. Há uma demonização da sexualidade sentida pelas mulheres, como se fosse uma moeda de troca (casamento), ou algo que se deve ser feito apenas para o prazer do outro, como uma obrigação. Outra personagem também que sentiu esse peso do "amor dos infelizes", assim como elas dizem, foi a anã, uma mulher que morava sozinha e era vista por todos como uma criança, por sua estatura e que em certo momento se sentia solitária e começa a ter uma vida sexualmente ativa com alguns moradores de sua região, o que causa um alvoroço, principalmente das mulheres, todo aquele cuidado que elas tinham pela anã passa a ser de repulsa, ainda mais quando essa anã engravida e ela não sabe quem é o pai, pois poderiam ser 15 dos moradores, entre eles solteiros e casados.
"Que ridícula soava a ideia de uma triste anã querer amar se o amor era um sentimento raro já para as pessoas normais. Para as pessoas". p. 33
Percebe-se a dificuldade das pessoas aceitarem os outros que soam diferentes do que elas eram acostumadas, e ditas como "normais", esse peso da indiferença recai sobre a anã, por sua diferença de porte dos demais, algo que acontece também comIsaura pela descoberta e experiência ruim com o sexo de modo não convencional (solteira), como também para Antonino, por ser homossexual e diferente do aceitável para se constituir uma família. Antonino assim como Isaura sentem o peso do desprezo por suas mães, mesmo sabendo que elas as amam, elas não os perdoam por suas atitudes ou simplesmente por eles serem como são. E assim como as pessoas que mais lhe deviam dar apoio, conselhos e confiança, elas também se sentem culpadas e indignas.
Matilde, mãe de Antonino é uma personagem que ao mesmo tempo que sofre por todos falarem de seu filho também sente ódio por ele ser assim, no decorrer do livro eles buscam um culpado ou um momento na criação do filho, uma desculpa pelo o que ele tenha se tornado.
"A Matilde, com o coração pequeno e a cabeça confusa a encher-se de ódio, achava que se o filho lhe morresse a vida estaria normal, porque ser mãe fora uma ilusão." p.97
"Disse-lhe que era um rapaz de pouco valor, mas que estava a habituar-se a valer pouco para não esperar nada da vida. Se não esperarmos nada, dizia ele, tudo quanto existe é já abundância." p. 139
A solidão é um dos sentimentos que mais entremeia na vida dos personagens, a falta de alguém para compartilhar suas histórias, suas vidas e sentimentos. Como se eles tivessem um grande amor para dividir mas as pessoas que eles tem por perto não os aceitam. O personagem mais aberto e sem amarras é Crisóstomo, compartilha sua vida com o filho, e tenta de várias formas poder amar Isaura que por todos os anos de depreciação do seu eu próprio não se vê digna de tal amor.
"Sentia-se lisonjeada com o interesse do pescador, mas era uma lisonja de recurso, como por desespero. A lisonja das prostitutas. Das que se contentavam com o interesse perverso dos homens porque não conseguiam um interesse limpo, amoroso, com decoro. A lisonja das infelizes." p. 85
Entre todos os personagens não tem como não admirar Crisóstomo com suas frases que marcam, não sei se foi coincidência, mas acredito que não, pois seu nome tem o adjetivo de eloquente, aquele que fala muito bem. E realmente ele tem esse forma bonita de se expressar, apesar de simples, ele é usa das palavras e de suas belas atitudes e consegue mudar a vida das várias pessoas ao seu redor, inclusive a sua. Crisóstomo demonstra uma grande admiração pela mulher em si, pelo dom de gerar um ser humano, algo que para um homem é impossível, esse dádiva tão pertencente a um ser. E o que remete muito neste livro é essa questão familiar, de estarmos conectados uns aos outros, de sermos não como estranhos mas como uma grande família.
"todos nascemos filhos de mil pais e de mais mil mães, e a solidão é sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que nos pertença de verdade e se gere um cuidado mútuo. ...como se fôssemos por aí irmãos, irmãos uns dos outros. Somos o resultado de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão passando de pessoa a pessoa, que nunca estaremos sós." p. 205
O que me fez lembrar de um artigo da Revista Galileu, onde dizia que somos parte de um todo, que queira ou não somos todos parentes:
"3 - Toda a vida na Terra tem um grau de parentesco
Quando olhamos para a exuberante biosfera que existe em nosso planeta, é difícil acreditar que, nos primórdios da vida, o único ser se resumia a um organismo unicelular. Ao longo de bilhões de anos de evolução, as espécies foram se diferenciando e se adaptando a diferentes ambientes. Mas, por mais distintas que pareçam, todas têm seu grau de parentesco uma com as outras, sem exceção. Todas tiveram um ancestral comum em algum momento."
Podemos pensar pelo lado científico, como citado acima, e até mesmo religioso se pensarmos nas escrituras cristãs que nos deixaram de que somos todos irmãos, de todas as formas tem um sentido profundo no modo de pensar de Crisóstomo, o que leva os personagens assim como vários outros que há no livro a se aceitarem como cada um é, a se confraternizarem e se sentirem completos por poder pertencer a algo, a um grupo que te acolhe. Que não há como se sentir solitário se nós não somos uma unidade, mas uma união de uma coisa só ou a criação de tudo.
"Aos quarenta anos, o Crisóstomo deitou-se sobre a areia e inventou que estava ligado a todas as pequenas e grandes coisas do mundo, como se lhes pertencesse por igual e cada pedaço de matéria fosse uma extensão longínqua de si."p. 199
A escrita de Valter Hugo Mãe chega a ser inspiradora de tão bem colocada e delicada, como também há algumas particularidades, como exemplo, ele não utiliza pontos de interrogação em suas frases, então em alguns momentos eu reli a frase ou parágrafo para entender se era um questionamento ou apenas uma afirmação, ou seja, ele foge totalmente das escritas tradicionais, lembrando o escritor José Saramago.
Também nos diálogos não há travessão e nesse livro específico, ele escreve como as pessoas da história falam, pode ser uma forma de prender o leitor também, damos mais atenção aquilo que nos soa diferente e para entender tendemos a prestar mais atenção, mas a partir do momento que nos acostumamos com a forma de escrita já nem ligamos mais se está faltando um ponto de interrogação ou travessão.
Não há um refinamento para estética do livro, o que pode ser uma forma do leitor se ater ao principal, que é a história. Outra particularidade que percebi é que em momentos que cita Deus ele é escrito em letra minúscula. Talvez como uma forma de aproximação do criador ao ser humano.
"a Matilde sentava-o ao colo e contava-lhe que o pai partira para cuidar deles à beira de deus." p. 124
Dá vontade de escrever mais e mais, pois tenho certeza que ainda faltou muito para descrever o quanto esse livro é magnífico e tocante, somente lendo para entender, já entrou para minha pequena lista de livros favoritos e com o tempo eu irei relê-lo para poder absorver ainda mais. Espero que tenha ajudado e recomendo que você leia esse livro! Não irá se arrepender!
Boa Leitura!
Artigo Citado: 7 fatos que provam que você e o cosmos estão intimamente conectados
Autor: André Jorge de Oliveira
Data: 10/07/2014
End. Digital: https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/Espaco/noticia/2014/07/7-fatos-que-provam-que-voce-e-o-cosmos-estao-intimamente-conectados.html
O filho de mil homens
Escritor: Valter Hugo Mãe
Editora: Biblioteca Azul
2º edição - 2016
https://www.instagram.com/a_lusotopia
site: https://www.instagram.com/a_lusotopia