jota 01/04/2012Edmund e os netsuquêsNa capa deste livro está escrito: "Você tem uma obra-prima nas mãos." (Sunday Times). Abro o volume e encontro vários jornalistas e escritores (são treze citações) falando maravilhas dele - incluindo Julian Barnes, autor inglês que aprecio bastante. Isso me conduz para o seguinte: realmente tenho um livro fabuloso à minha frente ou então ele é tremendamente chato.
Sim, é um livro tremendamente interessante este A Lebre Com Olhos de Âmbar, ainda que para desfrutá-lo completamente sejam necessários alguns conhecimentos de história e geografia europeia, literatura e arte em geral (mas também é sempre bom aprender alguma coisa nova e é esta outra função da literatura, não?).
A lebre com olhos de âmbar é a mesma da capa do livro - uma miniatura do animal, um netsuquê em marfim, parte de uma coleção de 264 minúsculos objetos japoneses de grande valor, nunca maiores do que uma caixa de fósforos. Mas para quem não colecionada nada, nem mesmo livros, que interesse tem aprender acerca dos netsuquês?
Ou mesmo conhecer a história da família do autor do livro, na verdade não exatamente um escritor (embora formado em literatura pela prestigiada Cambridge), mas um ceramista, ainda que um dos mais famosos do mundo, Edmund de Waal?
Tem muito interesse, pois este é um livro extremamente bem escrito, embora seja bastante erudito, mas se você já leu o ótimo Tudo Que É Sólido Desmancha no Ar, de Marshall Berman, e gostou, é provável que vá gostar deste também, pois os dois livros guardam semelhanças de estilo e têm alguns assuntos em comum.
De volta ao primeiro parágrafo, mais do que os leitores são os críticos literários e os acadêmicos que definem se um livro é uma obra-prima ou não. Mas parece ser o caso deste A Lebre com Olhos de Âmbar, que tem mesmo pinta de ser uma. Lembro-me do entusiasmo com que o saudoso jornalista cultural do Estadão, Daniel Piza, poucas semanas antes de falecer subitamente, colocou o livro de Edmund de Waal como uma de suas melhores leituras de 2011.
Dentre muitas, uma das passagens mais curiosas é quando de Waal trata de Marcel Proust e seu Em Busca do Tempo Perdido. Ficamos sabendo que um parente distante do autor, Charles Ephrussi, serviu de modelo para o Charles Swann de Proust. Igualmente desfilam por essas páginas todos aqueles personagens mundanos da Belle Epoque, notadamente os pintores franceses, também artistas vienenses e até mesmo Sigmund Freud. E, claro, a história da avenida (ou anel urbano) mais bela e famosa da Áustria, a Ringstrasse.
O avô paterno do autor era holandês e a avó austríaca, do clã Ephrussi, banqueiros, empreendedores, artistas, etc., gente importante durante o império austro-húngaro, mas também por vezes discriminada por ter origem judia (e depois perseguida na II Guerra Mundial). Mas não é apenas de sua família, de Viena ou de uma coleção de 264 netsuquês japoneses (a lebre é apenas um deles) que de Waal trata aqui, mas de muitos assuntos fascinantes. E apesar de tanta informação, em nenhum momento a literatura de de Waal é aborrecida.
Para o crítico do Estadão, Antonio Gonçalves Filho, de Waal faz assim uma mistura da prosa de Marcel Proust (“evoca o passado familiar com notável riqueza de detalhes”) e da de W. G. Sebald (“cruza fatos reais e ficção com enorme talento”). Para o já citado Daniel Piza, de Waal “fez uma espécie de mescla entre relato de viagem e ensaio cultural, à maneira de um Claudio Magris (Danúbio), mas que no fundo (ou na superfície) tem a simplicidade de uma narrativa de família.”
Importante também é que Edmund de Waal faz ao longo do volume várias referências a um notável autor austríaco, Joseph Roth (1894-1939) - sem nenhum parentesco com o americano Philip Roth, também de origem judia -, com poucos livros traduzidos para o português ainda. Sua obra-prima é A Marcha de Radetzky, de 1932, (há uma conhecida peça musical de Johann Strauss Sr. com este mesmo nome, mas de 1848), em que narra, através da história de uma família, a decadência do império austro-húngaro (via imperador Franz Joseph). Foi publicado pela Difel em 1984 e é difícil de ser encontrado. Espero que a Companhia das Letras, que já publicou Berlim (em 2006) e Jó (em 2008), também reedite A Marcha de Radetzky por aqui.
Depois de tratar da questão judaica na Áustria (são muitas páginas para refletir sobre a crueldade humana), finalmente, próximo do final vemos os netsuquês voltarem para o Japão, através do tio do autor, Ignace Ephrussi. E de lá, com a morte dele, viajam para a casa do autor em Londres. Onde se encontram desde 2009.
Foi uma bela viagem literária e cultural essa. E assim, A Lebre Com Olhos de Âmbar vai diretamente para minha lista das melhores leituras de 2012.
Lido entre 15 e 31.03.2012.