Gabriel 25/07/2020
A Condição tátil de todo mistério
Diante da estrutura desse livro me sentiria uma trapaceiro se não iniciasse discorrendo sobre sua própria natureza de objeto nas minhas mãos, nas minhas estantes, por tantos anos. Em uma escala incomparavelmente menor à narrativa deste livro que perfila séculos de jornada, imigração e expatriação pelo olhar de objetos inanimados, também tenho minha dose de aventura e deslocamento geográfico na qual a obra de Edmund de Waal me acompanhou.
Me seduzi pelas circunstâncias mais superficiais deste livro e por sorte ganhei ele de presente aos 16 anos por mãos de uma colega com quem mal tenho contato hoje. Acabei nunca estabelecendo prioridade para ele, então mesmo que se destacasse na minha humilde coleção de livros - que, nos últimos anos, tem sofrido agressiva expansão em quantidade - demorei até 2020 em meio à inércia da pandemia para lê-lo. Até que esse derradeiro momento chegasse, este livro foi morar comigo na favela, depois ficou enclausurado em caixas de papelão sendo reenviado para diferentes depósitos junto a quase todos os meus outros pertences enquanto eu não tinha nem sombra da possibilidade de uma casa, desabrigado, com um teto sobre minha cabeça apenas por favor. Podendo receber luz do sol e umidade novamente, este livro passou por mais um par de remessas de encaixotamento e mudança até minha família estar refém de uma situação desastrosa na mão de gente mal intencionada. Hoje leio ele num quarto-e-sala que, com muitos problemas, é o melhor apartamento que habitei em anos. Um alívio resguardado em uma nova etapa de vida, tranquila o bastante para estabelecer as próximas fases, os próximos sonhos.
Tenho muito receio do meu apego ao material, mas guardo ainda teimosamente uma coleção de livros muito desnivelada para o tamanho das casas que venho morando. Penso em ir para outros países, mas a ideia de me distanciar de todas essas coisas, das grandes e das pequenas, que emolduraram minha tranquilidade e meu tédio por tantos anos, parece alienante, como se me destituísse de alguma propriedade intelectual garantida unicamente pelo acumulo de informações e textos aos quais venho me dedicado laborioso.
Claro, tem outros objetos muitos: um violão, um par de castanhosas, bonequinhos de infância que guardo por capricho, um daruma com apenas um olho pintado (ainda). Mas os livros, particularmente, são curiosos nesse potencial individualizante. Todos vêm, necessariamente, de tiragens. Pelo menos em alguma outra casa tem outro livro igual a algum meu. Como se traços dos quais me apropriei se pulverizassem pela vida de pessoas que nunca vou conhecer. E ainda assim este apego gentil e intoxicante parece definitivo e único.
Os netsuques sob os quais Edmund se debruça são dotados, diferente dos livros, de singularidades muito específicas, cifradas no mais ínfimo talhe que lhes confere forma. E as formas são múltiplas, cômicas ou silenciosas, criativas ou cerimoniosas. Vindas para a Europa durante uma febre de fetichismo estético exacerbado com a vida japonesa, essas pequenas miniaturas foram de artigos de luxo até brinquedos e fugitivos de guerra. Ao princípio do livro Edmund parece deixar clara sua intenção de tornar os objetos e os lugares verdadeiros protagonistas deste livro-investigação, contando uma história por meio de todo endereço e toque que os netsuques já receberam. E, imediatamente, ao mesmo tempo se contradizendo e comprovando o que quer afirmar, Edmund de certa forma perde o controle de sua narrativa e é forçado a ir para direções inusitadas acompanhando as mãos que tanto manusearam estes artefatos.
A primeira parte desta investigação, dedicada a uma Paris cosmopolita, apresenta como pano de fundo diversas loucuras de época como imensas colunas sociais detalhando com precisão inventários de nobres e intelectuais apenas pelo prazer de uma competição insossa sobre masturbação plástica por "quem tem o gosto mais refinado". É quase um antecedente histórico da cafonice que caracteriza a vida de burgueses até hoje. Aqui tudo está de acordo com o pressuposto do livro. É com a ida da coleção para Viena, na condição de presente de casamento, que os itens ganham novas formatações, mais ocultas, mais pessoais, emoldurando fantasias e histórias contadas por uma mãe a seus filhos.
Já se torna impossível contar sobre os netsuques sem contar sobre as famílias que os carregam e preenchem de significado. Se torna inviável quando esta família - judia - é praticamente expulsa da Áustria e impedida de ir adiante também em meio ao levante nazista que desestruturou toda Europa e trouxe à tona todo antissemitismo pulsante naquelas terras para se beneficiar dele enquanto política de ódio maquinada com requinte.
Resgatadas da mansão, então tornada base de alguma função militar nazista, por uma empregada tão dedicada quanto apagada das lembranças seletivas dos membros principais da família, os netsuques terminam sua improvável viagem (até o momento) voltando para o Japão na mão de um dos herdeiros deste clã tão morbidamente combalido por uma constante perseguição, por uma herança tenebrosa de não-pertencimento e estrangeirismo onde quer que se estabeleçam raízes.
Não valeria a pena contar essa história - ou sequer, de fato, haveria história para contar - se o autor não abraçasse a infusão definitiva entre os objetos e seus detentores, a mistura entre ser e ter que elabora, muitas vezes maliciosamente, nossas intenções e personalidades. Somos vastamente definidos pelas coisas que nossos dedos aflitos alcançam e tateiam desde a infância e, por meio das superfícies decoradas, supomos a textura do resto do mundo. A dureza com a qual os relatos que Edmund consegue costurar em uma narrativa sempre envolve a materialidade para apresentar em seus estados - imutáveis, transitórios ou destruídos - certas circunstâncias subterrâneas das pessoas que por ali passaram, que ali tocaram. Ainda assim esses objetos nunca estão frios ao toque, mas sim repletos de calor humano ali depositado. Engrandece muito ao texto as dualidades e contradições que ele reconhece, como o financiamento com o qual a comunidade judaica alemã e austríaca contribuiu para a primeira guerra numa esperança alucinada de formarem assim uma definitiva validação de sua nacionalidade, ou o apagamento dos criados e pessoas que tanto auxiliaram seus antepassados e mesmo assim não tiveram quase nenhum reconhecimento, além dos erros financeiros e traições que fizeram parte de sua árvore geneálogica.
Bem ao final do texto, já tendo tanto relatado sobre os adultérios de sua bisavó, o autor relembra como, contando sobre isso, sua avó afirmava ter sofrido e se amargurado destes eventos. É o que leva Edmund a refletir sobre o quanto essas histórias, por serem suas, devem ser tornadas objetos e assim trafegarem adiante, como os netsuques os fazem. As vezes o prazer secreto destas coisas cujo significado só pode ser alcançado pelo seu toque, está em seu particular. É querer e conseguir ir para um lugar no passado, apenas você, sem mais ninguém. Uma memória coletiva e universal portátil, tornada só sua para o acesso ante ao tato.