Michele Duchamp 20/04/2021"Tudo bem com a guitarra, John, mas você jamais ganhará a vida com ela" - tia Mimi"I AM THE WALRUS”
A biografia de Philip Norman sobre o mais famoso dos Beatles é bem extensa e cobre de modo talvez inédito as inúmeras minúcias de sua origem. Como vem sendo o estilo adotado pelas biografias modernas, somos primeiro apresentados às gerações anteriores do biografado, começando pela história do seu avô, seu homônimo, John “Jack” Lennon que, assim como seu neto viria a se tornar, era também músico itinerante.
Acompanhamos o Beatle em sua infância semi-errante, sua adolescência rebelde (pleonasmo?), sua “paixão avassaladora” por Elvis Presley (“Eu não queria falar mal de Elvis nem em pensamento”), sua personalidade nervosa, jamais em paz, sua necessidade infantil em sempre apresentar um comportamento contestador, sua ânsia interna em andar sempre em dupla (Lennon/Shot, Lennon/Stutcliffe, Lennon/McCartney, Lennon/Ono... ah, John, por que você não fez a dupla Lennon/Julian?), sua generosidade, seus insights adoráveis, seu feliz amadurecimento e tantas outras características que fazem cada pessoa ser, para o bem e para o mal, insubstituível.
“BAD TO ME”
Ao ler várias resenhas, especialmente no goodreads, era frequente o uso do adjetivo “evil” ao se referir a Philip Norman. Porém, a meu ver, o autor não foi de modo algum cruel em sua retratação da vida e pensamentos de John Lennon; ao contrário, ele foi bastante condescendente. Há um esforço do biógrafo em sempre trazer explicações psicológicas que amenizem algumas atitudes desaprováveis do músico. Não que essas explanações sejam simplesmente mentiras elaboradas por alguém parcial, mas o autor sempre procura escolher, no rol de causas possíveis, a que melhor justifique o comportamento do Beatle - por óbvio, só porque a alternativa de interpretação é a mais favorável a Lennon, não quer dizer que seja inverossímil ou errada.Existe um tom de fundo admirativo, embora não explícito, que ecoa durante toda a escrita.
Philip Norman desmistifica a imagem de "santidade" do cantor, na verdade apenas conta o que aconteceu. Não é que exatamente Lennon tenha forjado deliberadamente e sozinho essa imagem, mas antes a própria veiculação da mídia não tem como passar o ser humano como ele realmente é.
“EVERYBODY’S GOT SOMETHING TO HIDE, EXCEPT ME AND MY MONKEY”
Existem partes verdadeiramente polêmicas/controversas, mas há muitas que são tidas como escândalo porque nós não sabemos exercitar o equilíbrio e o perdão. Então as pessoas não querem saber que seu ídolo imitava sadicamente trejeitos de deficientes físicos - ao invés de perceberem que isso não elimina a bondade e o valor de alguém.Não gostamos de ver os aspectos maldosos da personalidade dos outros porque ainda precisamos aprender a amar as pessoas com seus defeitos, ao invés de gostar unicamente de uma projeção imaculada para confortar a nossa consciência.
“JULIA”
A declaração de John Lennon, que gostaria de ter se envolvido “intimamente” em termos sexuais com sua mãe, eu não acreditei nela. É o típico verbete Lennoniano, burilado para chocar, talvez evocando um despertar real de sexualidade juvenil, porém aumentado para passar uma imagem de transgressor (mais uma vez). O que nos leva ao próximo item.
“I SHOULD HAVE KNOWN BETTER”
A polêmica sobre Cristo. Vamos primeiro contextualizar o ambiente que cozinhou essa declaração. A música pop há 60 anos atrás causava uma sensação ainda maior do que hoje, com sua nova forma de arte e de evocar sensações até então totalmente inéditas. “Tudo o mais era irreal, só o rock’n’roll era real” - John sintetizou com perfeição o que ela causou e causa nos jovens de antes e de agora. As reações desproporcionais a Frank Sinatra e a Elvis foram um prelúdio para a insanidade que os Beatles provocariam. Ninguém estava preparado para a Beatlemania. Se vocês quiserem ter uma idéia do que foi aquilo, recomendo “I Want to Hold Your Hand”, filme do Robert Zemeckis, que mostra um grupo de jovens tentando ir à Nova York para a primeira apresentação dos Beatles no famoso Ed Sullivan Show. Evidentemente toda essa histeria dava uma sensação de adoração sem precedentes - porque de fato era exatamente isso mesmo.
Quando Lennon foi entrevistado por uma repórter amiga de longa data da banda, durante horas, essa foi apenas uma das inúmeras declarações inconsequentes que o astro faria, sem o intuito de ser exatamente polêmico, mas lançando opiniões provocativas sem muita reflexão a respeito. Em um misto de deslumbramento, vanglória e especialmente ingenuidade ao não ter noção da óbvia reação efervescente que uma declaração dessas causaria, vemos nesse episódio revelada as verdadeiras raízes de onde e como foi criado John Winston Lennon - não um garoto pobre sem instrução, mas um rapazinho bem-nascido, bem cuidado e muito protegido. Quando você é blindado e convive com pessoas de um certo nível social, você não entende em sua amplidão como a vida funciona. O escritor de ficção científica Orson Scott Card, em um de seus contos, relata uma história onde o protagonista se vê envolvido em um problema sério, com consequências gravíssimas para o próprio por conta de seu comportamento leviano, citando que o personagem não soube prever o que o esperava e não sabia bem como reagir porque “não era do tipo de antecipar uma encrenca. A vida nunca lhe dera muito problema.” Ísso se aplica plenamente a Lennon. Após essa frase ser publicada, em uma revista para adolescentes nos Estados Unidos, houve todo tipo de revolta e retaliação que vocês não podem imaginar. Aqui - acertada e sensatamente - John Lennon reagiu não com empáfia, mas com temor, preocupado que a banda inteira fosse prejudicada “por algo falado por ele”. A raiva gerada foi inteiramente desproporcional, pois não se deve promover linchamentos públicos - entendeu facebook? - por mais que não se concorde com declarações “racistas, preconceituosas, homofóbicas e antirreligiosas”, pra usar um rol de termos que o pessoal hoje entenderia melhor. Fiquei com muita pena dele.
“JEALOUS GUY”
“Quem era o verdadeiro John Lennon?”
Eu odeio esse tipo de pergunta porque presume que todos têm um monstro interior que por mais que você domestique, lute e enfrente, é ele quem te define.
Era um comunista hipócrita porque escreveu “Imagine” e tinha posses?
“É só a m**** de uma música”, replicou ele a um comentário semelhante em certa ocasião.
Era um péssimo pai para Julian Lennon, tendo abandonado o filho?
Julian pode se pronunciar sobre isso, com toda a razão. Mas Mark David Chapman interrompeu um processo de reaproximação e arrependimento que poderia ter florescido. Que dor no meu coração ao ver a crueldade do assassinato mais banal dos anos recentes que tirou essa oportunidade de um pai. Que Deus leve isso em conta.
Era quase um ícone religioso, cujo dom da palavra despertou milhões?
“Sou só um cara, amigo, que escreve canções. Você pega palavras e as junta uma às outras para ver se fazem algum sentido… estou dizendo ‘tive um lance legal hoje e foi o que me ocorreu hoje de manhã e eu amo você, Yoko’.”
Pregava a revolução e era o porta-voz de uma geração?
“ Na verdade, a “Revolution” de John não era uma convocação para se tomar as ruas, mas antes uma sátira sobre todos os jovens revolucionários bem- alimentados com sua impetuosa vontade de “mudar o mundo” e os “icônicos retratos do presidente Mao” pendurados na porta de seus banheiros. A letra explicitamente recusava qualquer apoio moral ou financeiro a “mentes que odeiam”, avisando àqueles voltados para a mera destruição insensata que “não contem comigo” (“count me out”).”
Então afinal quem era John Lennon?
John Lennon era um humano como eu e você. Capaz de atos generosos e atos perversos.
Defendia uma coisa e praticava outra. Defendia uma coisa e praticava o que defendia.
Não trocava as fraldas de Julian e conseguia cozinhar pratos pra dez, doze pessoas.
Era inseguro por não se achar bom o suficiente e foi o homem que compôs Strawberry Fields Forever.
Construiu um império, sendo um dos homens mais bem-sucedidos financeiramente do mundo moderno por sua própria capacidade intelectual e exerceu com plenitude e devotamento o papel materno com Sean.
Vamos então deixá-lo definir a si mesmo: “I’m just a jealous guy”.