Lista de Livros 08/01/2017
Lista de Livros: Formação do Brasil Contemporâneo – Caio Prado Jr.
“Naturalmente, o que antes de mais nada, e acima de tudo, caracteriza a sociedade brasileira de princípios do século XIX é a escravidão. Em todo lugar onde encontramos tal instituição, aqui como alhures, nenhuma outra levou-lhe a palma na influência que exerce, no papel que representa em todos os setores da vida social. Organização econômica, padrões materiais e morais, nada há que a presença do trabalho servil, quando alcança as proporções de que fomos testemunhas, deixe de atingir; e de um modo profundo, seja diretamente, seja por suas repercussões remotas. Não insistirei aqui sobre a influência material e moral da escravidão no seu caráter geral, o que a história e a sociologia já registraram tantas vezes, seja no tempo, seja no espaço. A literatura sobre o assunto é ampla, e nada lhe poderíamos acrescentar sem repisar matéria fartamente debatida e conhecida. Ficarei aqui apenas no que é mais peculiar ao nosso caso. Porque a escravidão brasileira tem característicos próprios; aliás, os mais salientes, tem-nos em comum com todas as colônias dos trópicos americanos, nossas semelhantes; e são tais característicos, talvez mais ainda que outros comuns à escravidão em geral, que modelaram a sociedade brasileira.
A escravidão americana não se filia, no sentido histórico, a nenhuma das formas de trabalho servil que vêm, na civilização ocidental, do mundo antigo ou dos séculos que o seguem; ela deriva de uma ordem de acontecimentos que se inaugura no século XV com os grandes descobrimentos ultramarinos, e pertence inteiramente a ela. O trabalho servil, tendo atingido no mundo antigo proporções consideráveis, declinara em seguida, atenuando-se neste seu derivado que foi o servo da gleba, para afinal se extinguir por completo em quase toda a civilização ocidental. Com o descobrimento da América, ele renasce das cinzas com um vigor extraordinário. Esta circunstância precisa ser particularmente notada. O fato de se tratar, no caso da escravidão americana, do renascimento de uma instituição que parecia para sempre abolida do Ocidente, tem uma importância capital. A ele se filia um conjunto de consequências que farão do instituto servil, aqui na América, um processo original e próprio, com repercussões que somente vistas de tal ângulo se poderão avaliar.
Ressalta isso da comparação que podemos fazer daqueles dois momentos históricos da escravidão: o do mundo antigo e o do moderno. No primeiro, com o papel imenso que representa, o escravo não é senão a resultante de um processo evolutivo natural cujas raízes se prendem a um passado remoto; e ele se entrosa por isso perfeitamente na estrutura material e na fisionomia moral da sociedade antiga. Figura nela de modo tão espontâneo, aparece mesmo tão necessário e justificável como qualquer outro elemento constituinte daquela sociedade. É neste sentido que se compreende a tão citada e debatida posição escravista de um filósofo como Aristóteles, que, pondo-se embora de parte a apreciação que dele se possa fazer como pensador, representa no entanto, nos seus mais elevados padrões, o modo de sentir e de pensar de uma época. A escravidão na Grécia ou em Roma seria como o salariado em nossos dias: embora discutida e seriamente contestada na sua legitimidade por alguns, aparece contudo aos olhos do conjunto como qualquer coisa de fatal, necessário e insubstituível.
Coisa muito diferente se passará com a escravidão moderna, que é a nossa. Ela nasce de chofre, não se liga a passado ou tradição alguma. Restaura apenas uma instituição justamente quando ela já perdera inteiramente sua razão de ser, e fora substituída por outras formas de trabalho mais evoluídas. Surge assim como um corpo estranho que se insinua na estrutura da civilização ocidental, em que já não cabia. E vem contrariar-lhe todos os padrões morais e materiais estabelecidos. Traz uma revolução, mas nada a prepara. Como se explica então? Nada mais particular, mesquinho, unilateral. Em vez de brotar, como a escravidão do mundo antigo, de todo o conjunto da vida social, material e moral, ela nada mais será que um recurso de oportunidade de que lançarão mão os países da Europa a fim de explorar comercialmente os vastos territórios e riquezas do Novo Mundo. É certo que a escravidão americana teve na península seu precursor imediato no cativeiro dos mouros, e logo depois, dos negros africanos, que as primeiras expedições ultramarinas dos portugueses trouxeram para a metrópole como presas de guerra ou fruto de resgates. Mas não foi isto mais que um primeiro passo, prelúdio e preparação do grande drama que se passaria na outra margem do Atlântico. É aí que verdadeiramente renascerá, em proporções que nem o mundo antigo conhecera, o instituto já condenado e praticamente abolido.
Por este recurso de que gananciosamente lançou mão, pagará a Europa um pesado tributo. Podemos repetir o conceito que exprime a propósito John Kellis Ingram (em Slavery): “Não muito depois do fim da servidão nas comunidades mais avançadas, vem à luz o moderno sistema de escravidão colonial, que, em vez de ser o resultado espontâneo de necessidades sociais, e servir a necessidades temporárias do desenvolvimento humano, era política e moralmente uma aberração monstruosa”. Não é num terreno de “moral absoluta” que precisamos ou devemos nos colocar para fazer o juízo da escravidão moderna. Já sem falar na devastação que provocará, tanto das populações indígenas da América como das do continente negro, o que de mais grave determinará, entre os povos colonizadores e sobretudo em suas colônias do Novo Mundo, é o fato de vir a nova escravidão desacompanhada, ao contrário do que se passara no mundo antigo, de qualquer elemento construtivo, a não ser num aspecto restrito, puramente material, da realização de uma empresa de comércio: um negócio apenas, embora com bons proveitos para seus empreendedores. E por isto, para objetivo tão unilateral, puseram os povos da Europa de lado todos os princípios e normas essenciais em que se fundava a sua civilização e cultura. O que isto representou para eles, no correr do tempo, de degradação e dissolução, com repercussões que se vão afinal manifestar no próprio terreno do progresso e da prosperidade material, não foi ainda bem apreciado e avaliado, nem cabe aqui abordar o assunto. Mas terá sido este um dos fatores, e dos de primeiro plano, do naufrágio da civilização ibérica, tanto de uma como de outra de suas duas nações. Foram elas que mais se engajaram naquele caminho; serão elas também suas principais vítimas (A Inglaterra também teve papel proeminente no restabelecimento da escravidão; e sabe-se que durante séculos seus comerciantes tiveram o quase monopólio do tráfico negreiro, pelo qual a nação chegou até a tomar armas. Mas não sofreu tão fundamente os efeitos danosos da escravidão, porque seu papel foi sobretudo este de intermediário. O trabalho servil nunca assentou pé na Inglaterra propriamente).
Muito mais grave, contudo, foi a escravidão para as nascentes colônias americanas. Elas se formam neste ambiente deletério que ela determina; o trabalho servil será mesmo a trave mestra de sua estrutura, o cimento com que se juntarão as peças que as constituem. Oferecerão por isso um triste espetáculo humano; e o exemplo do Brasil, que vamos retraçar aqui, se repete mais ou menos idêntico em todas elas.
Mas há outra circunstância que vem caracterizar ainda mais desfavoravelmente a escravidão moderna: é o elemento de que se teve de lançar mão para alimentá-la. Foram eles os indígenas da América e o negro africano, povos de nível cultural ínfimo comparado ao de seus dominadores (esta observação não seria tão exata com relação a certos indígenas americanos, como os do México e do altiplano andino, se os conquistadores não tivessem, de início e com ferocidade quase sem precedente, feito tábua rasa de todos seus valores culturais). Aqui ainda, a comparação com o que ocorreu no mundo antigo é ilustrativa. Neste último, a escravidão se forneceu de povos e raças que muitas vezes se equiparam a seus conquistadores, se não os superam. Contribuíram assim para estes com valores culturais de elevado teor. Roma não teria sido o que foi se não contasse com o que lhe trouxeram seus escravos, recrutados em todas as partes do mundo conhecido, e que nela concentram o que então havia de melhor e culturalmente mais elevado. Muito lhes deveu e muito deles aprendeu a civilização romana. O escravo não foi nela a simples máquina de trabalho bruto e inconsciente que é o seu sucessor americano.
Na América, pelo contrário, a que assistimos? Ao recrutamento de povos bárbaros e semibárbaros, arrancados do seu habitat natural e incluídos, sem transição, numa civilização inteiramente estranha. E aí, que os esperava? A escravidão no seu pior caráter, o homem reduzido à mais simples expressão, pouco senão nada mais que o irracional: “instrumento vivo de trabalho”, o chamará Perdigão Malheiro. Nada mais se queria dele, e nada mais se pediu e obteve que a sua força bruta, material. Esforço muscular primário, sob a direção e açoite do feitor. Da mulher, mais a passividade da fêmea na cópula. Num e noutro caso, o ato físico apenas, com exclusão de qualquer outro elemento ou concurso moral. A “animalidade” do homem, não a sua “humanidade”.
A contribuição do escravo preto ou índio para a formação brasileira é, além daquela energia motriz, quase nula. Não que deixasse de concorrer, e muito, para a nossa “cultura”, no sentido amplo em que a antropologia emprega a expressão; mas é antes uma contribuição passiva, resultante do simples fato da presença dele e da considerável difusão do seu sangue, que uma intervenção ativa e construtora. O cabedal de cultura que traz consigo da selva americana ou africana, e que não quero subestimar, é abafado, e se não aniquilado, deturpa-se pelo estatuto social, material e moral a que se vê reduzido seu portador. E aponta por isso apenas, muito timidamente, aqui e acolá. Age mais como fermento corruptor da outra cultura, a do senhor branco que se lhe sobrepõe. (Isto é, entre outros, particularmente o caso do sincretismo religioso que resultou do amálgama de catolicismo e paganismo, em doses várias, que formaria o fundo religioso de boa parte do Brasil. Religião neoafricana, mais que qualquer outra coisa, e que se perdeu à grandeza e elevação do cristianismo, também não conservou a espontaneidade e riqueza de colorido das crenças negras em seu estado nativo.)
É a esta passividade aliás das culturas negras e indígenas no Brasil que se deve o vigor com que a do branco se impôs e predominou inconteste, embora fosse muito reduzida, relativamente à das outras raças, a sua contribuição demográfica. O negro e o índio teriam tido certamente outro papel na formação brasileira, e papel amplo e fecundo, se diverso tivesse sido o rumo dado à colonização; se se tivesse procurado neles, ou aceitado uma colaboração menos unilateral e mais larga que a do simples esforço físico. Mas a colonização brasileira se processa num plano acanhado; outro objetivo não houve que utilizar os recursos naturais do seu território para a produção extensiva e precipitada de um pequeno número de gêneros altamente remunerados no mercado internacional. Nunca se desviou de tal rumo, fixado desde o primeiro momento da conquista; e parece que não havia tempo a perder, nem sobravam atenções para empresas mais assentes, estáveis, ponderadas. Só se enxergava uma perspectiva: a remuneração farta do capital que a Europa aqui empatara. A terra era inexplorada, e seus recursos, acumulados durante séculos, jaziam à flor do solo. O trabalho para tirá-los de lá não pedia grandes planos nem impunha problemas complexos: bastava o mais simples esforço material. É o que se exigiu de negro e de índio que se incumbiriam da tarefa.
Correndo parelhas com esta contribuição que se impôs às raças dominadas, ocorre outra, este subproduto da escravidão largamente aproveitado: as fáceis carícias da escrava para a satisfação das necessidades sexuais do colono privado de mulheres de sua raça e categoria. Ambas as funções se valem do ponto de vista moral e humano; e ambas excluem, pela forma com que se praticaram, tudo que o negro ou o índio poderiam ter trazido como valor positivo e construtor de cultura.
Uma última circunstância diferencia e caracteriza a escravidão americana: é a diferença profunda de raças que separa os escravos de seus senhores. Em algumas partes da América, tal diferença constituiu, como se sabe, obstáculo intransponível à aproximação das classes e dos indivíduos, e reforçou por isso consideravelmente a rigidez de uma estrutura que o sistema social, em si, já tornava tão estanque internamente. Mas não me ocuparei destas colônias, porque entre nós a aproximação se realizou e em escala apreciável. Isto contudo dentro de limites que apesar de tudo não são amplos, pelo menos até o momento histórico que nos interessa aqui. Existiu sempre um forte preconceito discriminador das raças, que se era tolerante e muitas vezes se deixava iludir, fechando os olhos a sinais embora bem sensíveis da origem racial dos indivíduos mestiços, nem por isso deixou de se manter, e de forma bem marcada, criando obstáculos muito sérios à integração da sociedade colonial num conjunto se não racial, o que seria mais demorado, pelo menos moralmente homogêneo. Não discutirei aqui o preconceito de raça e de cor, nem sua origem; se ligado a certos caracteres psicológicos inatos de ordem estética ou outra, ou se fruto apenas de situações e condições sociais particulares. O fato incontestável, aceite-se qualquer daqueles pontos de vista, é que a diferença de raça, sobretudo quando se manifesta em caracteres somáticos bem salientes, como a cor, vem, se não provocar — o que é passível de dúvidas bem fundamentadas, e a meu ver incontestáveis —, pelo menos agravar uma discriminação já realizada no terreno social. E isto porque empresta uma marca iniludível a esta diferença social. Rotula o indivíduo, e contribui assim para elevar e reforçar as barreiras que separam as classes. A aproximação e fusão se tornam mais difíceis; acentua-se o predomínio de uma sobre a outra.
Isto não exclui, e sabemos que não exclui entre nós, uma circulação intrassocial apreciável, que permitiu aqui a elevação a posições de destaque, e isto ainda na colônia, de indivíduos de indiscutível origem negra. Índia também, esta claro; mas o caso é muito menos de se destacar, porque o preconceito não foi aí excessivamente rigoroso, como no caso do africano. Mas, aceitando aquela elevação, não se eliminava o preconceito. Contornava-se com um sofisma que já lembrei acima, um “branqueamento” aceito e reconhecido. Aceitava-se uma situação criada pela excepcional capacidade de elevação de um mestiço particularmente bem-dotado; mas o preconceito era respeitado. Aliás esta elevação social de indivíduos de origem negra só se admitia nos de tez mais clara, os brancarrões, em que o sofisma do branqueamento não fosse por demais grosseiro. O negro ou mulato escuro, este não podia abrigar quaisquer esperanças, por melhores que fossem suas aptidões: inscrevia-se nele, indelevelmente, o estigma de uma raça que, à força de se manter nos ínfimos degraus da escala social, acabou confundindo-se com eles. “Negro” ou “preto” são na colônia, e sê-lo-ão ainda por muito tempo, termos pejorativos; empregam-se até como sinônimos de “escravo”. E o indivíduo daquela cor, mesmo quando não o é, trata-se como tal. A este respeito, Luccock refere um caso ilustrativo. Necessitando certa vez do auxílio de dois pretos livres que se encontravam em companhia, forçou-os, diante de sua relutância e com auxílio de outras pessoas, à ajuda pedida. Fê-lo, assim o afirma procurando justificar-se, levado por contingências extremas, porém os seus escrúpulos não foram partilhados pelos brasileiros que o ajudaram, e que agiram com a maior naturalidade, como se estivessem no uso de um direito indiscutível.
O papel da simples cor na discriminação das classes e no tratamento recíproco que elas se dispensam reflete-se até nos usos e costumes legais. Observou Perdigão Malheiro que, nos leilões de escravos, se os lances “a bem da liberdade” — que são os feitos sob promessa de alforria — excluíam em regra qualquer outro, isto era, no caso de escravos claros, uma norma absoluta. Acrescenta o mesmo autor que era notória a repugnância contra a escravidão de gente de cor clara; e chega até ao exagero de concluir que, se não fora a cor escura dos escravos, os costumes brasileiros não tolerariam mais o cativeiro. É verdade que ele escrevia isto em 1867, quando a escravidão já perdera muito de sua força moral; e que os conceitos citados partem de um escritor notoriamente simpático à causa da liberdade — seu grande livro (A escravidão no Brasil, que é clássico, e até hoje não foi igualada por outro) não é aliás senão um libelo a favor da liberdade. O seu depoimento, entretanto, conserva assim mesmo muito do seu valor, e comprova o quanto a simples cor atua no sentido de rebaixar os indivíduos da raça dominada; faz entrever também como seria mais dura e áspera a escravidão quando, como se dava entre nós, à discriminação social se acrescenta este caráter marcado e iniludível.
Em suma, verifica-se por tudo que acabamos de ver que na escravidão, tal como se estabelece na América, em particular no Brasil, de que trato aqui, concorrem circunstâncias especiais que acentuam seus caracteres negativos, agravando os fatores moralmente corruptores e deprimentes que ela, por si só, já encerra. Incorporou à colônia, ainda em seus primeiros instantes, e em proporções esmagadoras, um contingente estranho e heterogêneo de raças que beiravam ainda o estado de barbárie, e que, no contato com a cultura superior de seus dominadores, se abastardaram por completo. E o incorporaram de chofre, sem nenhum estágio preparatório. No caso do indígena, ainda houve a educação jesuítica e de outras ordens, que, com todos seus defeitos, trouxe todavia um começo de preparação de certo alcance. Mesmo depois da expulsão dos jesuítas, o que desfalcou notavelmente a obra missionária, pois as demais ordens não souberam ou não puderam suprir a falta, o estatuto dos índios, embora longe de corresponder ao que deveria ter sido em face da legislação vigente, e cujas intenções eram justamente de amparar e educar este selvagem que se queria integrar na colonização, ainda contribuiu para manter o indígena afastado das formas mais deprimentes da escravidão; e se não lhe proporcionou grandes vantagens e progressos materiais, concedeu-lhe um mínimo de proteção e de estímulo. Mas para o negro africano, nada disto ocorreu. As ordens religiosas, solícitas em defender o índio, foram as primeiras a aceitar, a promover mesmo a escravidão africana, a fim de que os colonos, necessitados de escravos, lhes deixassem livres os movimentos no setor indígena. O negro não teve no Brasil a proteção de ninguém. Verdadeiro “pária” social, nenhum gesto se esboçou em seu favor. E se é certo que os costumes e a própria legislação foram com relação a ele mais benignos na sua brutalidade escravista que em outras colônias americanas, tal não impediu contudo que o negro fosse aqui tratado com o último dos descasos no que diz respeito à sua formação moral e intelectual, e preparação para a sociedade em que à força o incluíram. Estas não iam além do batismo e algumas rudimentares noções de religião católica, mais decoradas que aprendidas, e que deram apenas para formar, com suas crenças e superstições nativas, este amálgama pitoresco, mas profundamente corrompido, incoerente e ínfimo como valor cultural, que, sob o nome de “catolicismo”, mas que dele só tem o nome, constitui a verdadeira religião de milhões de brasileiros; e que, nos seus caracteres extremos, Quirino, Nina Rodrigues e mais recentemente Artur Ramos trouxeram à luz da sombra em que um hipócrita e absurdo pudor a tinham mantido.
As raças escravizadas e assim incluídas na sociedade colonial, mal preparadas e adaptadas, vão formar nela um corpo estranho e incômodo. O processo de sua absorção se prolongará até nossos dias, e está longe de terminado. Não se trata apenas da eliminação étnica que preocupa tanto os “racistas” brasileiros, e que, se demorada, se fez e ainda se faz normal e progressivamente sem maiores obstáculos. Não é este aliás o aspecto mais grave do problema, aspecto mais de “fachada”, estético, se quiserem: em si, a mistura de raças não tem para o país importância alguma, e de certa forma até poderá ser considerada vantajosa. O que pesou muito mais na formação brasileira é o baixo nível destas massas escravizadas que constituirão a imensa maioria da população do país. No momento que nos ocupa, a situação era naturalmente muito mais grave. O tráfico africano se mantinha, ganhava até em volume, despejando ininterruptamente na colônia contingentes maciços de populações semibárbaras. O que resultará daí não poderia deixar de ser este aglomerado incoerente e desconexo, mal amalgamado e repousando em bases precárias que é a sociedade colonial brasileira. Certas consequências serão mais salientes: assim o baixo teor moral nela reinante, que se verifica entre outros sintomas na relaxação geral de costumes, assinalada e deplorada por todos os observadores contemporâneos, nacionais e estrangeiros. Bem como o baixo nível e ineficiência do trabalho e da produção, entregues como estavam a pretos boçais e índios apáticos. O ritmo retardado da economia colonial tem aí uma de suas principais causas.
Assim no campo como na cidade, no negócio como em casa, o escravo é onipresente. Torna-se muito restrito o terreno reservado ao trabalho livre, tal o poder absorvente da escravidão. E a utilização universal do escravo nos vários misteres da vida econômica e social acaba reagindo sobre o conceito do trabalho, que se torna ocupação pejorativa e desabonadora.
No campo é a mesma coisa; nenhum homem livre pegaria da enxada sem desdouro, e por isso, dirá Vilhena, “havendo embora terras abundantes, carecem de propriedade até mesmo aqueles que poderiam ser proprietários, pois não tendo 150 mil réis para comprar cada um negro que trabalhe, o mesmo é ser proprietário que o não ser”. Nessas condições, não é de admirar que tão pequena margem de ocupações dignas se destine ao homem livre. Se não é ou não pode ser proprietário ou fazendeiro, senhor de engenho ou lavrador, não lhe sobrarão senão algumas raras ocupações rurais (na indústria pastoril, em particular na dos sertões do Nordeste, vimos que o trabalho livre é mais comum; mas trata-se de um setor de poucas ocupações, em que a mão de obra é escassa. Além disto, pelas condições peculiares em que se realiza, está mais ou menos reservada exclusivamente à população nativa local) — feitor, mestre dos engenhos etc.; algum ofício mecânico que a escravidão não monopolizou e que não se torna indigno dele pela brancura excessiva de sua pele; as funções públicas, se, pelo contrário, for suficientemente branco; as armas ou o comércio, negociante propriamente ou caixeiro. Nesta última profissão, ainda esbarra com outra restrição: o comércio é privilégio dos “reinóis”, os nascidos no reino. Os naturais da colônia encontram aí as portas fechadas, não por determinações legais ou preconceitos de qualquer natureza, mas por um uso estabelecido de longa data, e ciosamente guardado pelos primeiros instalados, justamente os reinóis, que por convenção tácita, mas rigorosa, conservam para si e seus patrícios um monopólio de fato. “Os vindos do Reino”, escreverá o marquês do Lavradio, vice-rei do Rio de Janeiro, “não cuidam em nenhuma outra cousa que em se fazerem senhores do comércio que aqui há e não admitirem filho nenhum da terra a caixeiros por donde possam algum dia serem negociantes; e daí abrangerem em si tudo que é comércio.” Situação muito séria e prenhe das mais graves consequências. Sobram ainda, para os indivíduos livres da colônia, as profissões liberais — advogados, cirurgiões etc. São naturalmente ocupações por natureza de acesso restrito. Exigem aptidão especial, preparos e estudos que não se podem fazer na colônia, e portanto recursos de certa monta.
Restará a Igreja. Esta sim oferece oportunidades mais amplas. Os estudos se podiam fazer em grande parte no Brasil; e mesmo completar, sobretudo com relação aos seculares. Os seminários foram cronologicamente os primeiros institutos de ensino superior da colônia. Aliás, os candidatos ao estado eclesiástico que demonstrassem aptidões encontravam sempre amparo, e não faltava quem lhes custeasse os estudos, aqui ou na Europa. É certo que o preconceito de cor também tinha aí o seu lugar, e quem não fosse de pura origem branca necessitava dispensa especial. Mais uma questão de forma: o estudante com reais qualidades acabava sempre vencendo. Não foi este o caso de Luís Antônio da Silva e Sousa, depois poeta e historiador de algum nome, mestiço de origem humilíssima, e que, apesar de ver fechadas no Brasil as portas da Igreja, acabou obtendo dispensa necessária em Roma, e com o auxílio do próprio ministro português junto ao Vaticano. Aliás os mestiços são numerosos no clero brasileiro. A Igreja sempre honrou no Brasil sua tradição democrática, a maior força com que contou para a conquista espiritual do Ocidente. O que ocorreu na Europa medieval se repetiria na colonização do Brasil: a batina se tornaria o refúgio da inteligência e cultura; e isto porque é sobretudo em tal base que se faria a seleção para o clero. Ele foi assim, durante a nossa fase colonial, a carreira intelectual por excelência, e a única de perspectivas amplas e gerais; e quando, realizada a Independência, se teve de recorrer aos nacionais para preencher os cargos políticos do país, é sobretudo nele que se recrutarão os candidatos. A Igreja tem assim na colônia um papel importante como vazão para colocações.
Em suma, o que se verifica é que os meios de vida, para os destituídos de recursos materiais, são na colônia escassos. Abre-se assim um vácuo imenso entre os extremos da escala social: os senhores e os escravos; a pequena minoria dos primeiros e a multidão dos últimos. Aqueles dois grupos são os dos bem classificados da hierarquia e na estrutura social da colônia: os primeiros serão os dirigentes da colonização nos seus vários setores; os outros, a massa trabalhadora. Entre estas duas categorias nitidamente definidas e entrosadas na obra da colonização comprime-se o número, que vai avultando com o tempo, dos desclassificados, dos inúteis e inadaptados; indivíduos de ocupações mais ou menos incertas e aleatórias ou sem ocupação alguma. Aquele contingente vultoso em que Couty mais tarde veria o “povo brasileiro”, e que pela sua inutilidade daria como inexistente, resumindo a situação social do país com aquela sentença que ficaria famosa: “Le Brésil n’a pas de peuple” (“O Brasil não tem povo”). (...)
Finalmente, a última parte, a mais degradada, incômoda e nociva, é a dos desocupados permanentes, vagando de léu em léu à cata do que se manter e que, apresentando-se a ocasião, enveredam francamente pelo crime. É a casta numerosa dos “vadios”, que nas cidades e no campo é tão numerosa, e de tal forma caracterizada por sua ociosidade e turbulência, que se torna uma das preocupações constantes das autoridades e o leitmotiv de seus relatórios; e não se ocupam menos dela outros observadores contemporâneos da vida colonial. O vice-rei Luís de Vasconcelos se queixa deles amargamente, e urge providências ao deixar o governo em 1789. Vilhena lhes consagra longas páginas de suas cartas; o brigadeiro Cunha Matos considera-os um dos maiores flagelos da capitania de Goiás; e o presidente da Mesa de Inspeção do Rio de Janeiro, o desembargador Rocha Gameiro, dissertando sobre a agricultura da colônia, indica os vadios como um dos obstáculos ao seu desenvolvimento. Os vadios não escapam também à observação dos viajantes estrangeiros: Saint-Hilaire e Martius referem-se a eles amiúde, e sentiram muito bem que não se trata de casos esporádicos, mas de uma verdadeira endemia social.
É entre estes desclassificados que se recrutam os bandos turbulentos que infestam os sertões, e ao abrigo de uma autoridade pública distante ou fraca hostilizam e depredam as populações sedentárias e pacatas; ou pondo-se a serviço de poderosos e mandões locais, servem os seus caprichos e ambições nas lutas de campanário que eles entre si sustentam; como estes Feitosas do Ceará, que durante anos levam o interior da capitania a ferro e fogo, e só foram dominados e presos graças a um estratagema do governador Oeynhausen. Mas apesar de casos extremos como este, o arrolamento dos indivíduos sem eira nem beira nas milícias particulares dos grandes proprietários e chefes locais ainda constitui um penhor de segurança e tranquilidade, porque canaliza sua natural turbulência e lhes dá um mínimo de organização e disciplina. Entregues a si mesmos, eles manteriam o sertão despoliciado em constante polvorosa, e normalizariam o crime. E não se veria nestas vastidões desamparadas pela lei o que Saint-Hilaire com surpresa constatava: uma relativa segurança de que seu caso pessoal era exemplo flagrante. Nenhuma vez, nos longos anos em que perambulou pelo interior do Brasil, foi jamais incomodado.
Nas cidades, os vadios são mais perigosos e nocivos, pois não encontram, como no campo, a larga hospitalidade que lá se pratica, nem chefes sertanejos prontos a engajarem sua belicosidade. No Rio de Janeiro era perigoso transitar só e desarmado em lugares ermos, até em pleno dia. O primeiro intendente de polícia da cidade tomará medidas enérgicas contra tais elementos. Mas o mal se perpetuará, e só na República, ninguém o ignora, serão os famosos “capoeiras”, sucessores dos vadios da colônia, eliminados da capital.
Como se vê, além da sua massa, a subcategoria da população colonial de que nos ocupamos fazia muito bem sentir sua presença. Ainda o fará mais nas agitações que precedem a Independência e vão até meados do século, mantendo o país num estado pré-anárquico permanente. No torvelinho das paixões e reivindicações então desencadeadas, pelo rompimento do equilíbrio social e político que provoca a transição de colônia para império livre, aquela massa deslocada, indefinida, mal enquadrada na ordem social, e na realidade produto e vítima dela, se lançará na luta com toda a violência de instintos longamente refreados, e com muitas tintas da barbárie ainda tão próxima que lhe corria nas veias em grandes correntes. Não resta a menor dúvida que as agitações anteriores e posteriores à Independência, as do tormentoso período da minoridade e do primeiro decênio do Segundo Império, todas elas ainda tão mal estudadas, são fruto em grande parte daquela situação que acabamos de analisar. É naquele elemento desenraizado da população brasileira que se recrutará a maior parte da força armada para a luta das facções políticas que se formam; e ela servirá de aríete das reivindicações populares contra a estrutura maciça do Império, que apesar da força do empuxo, resistirá aos seus golpes. Tem assim um grande interesse histórico acentuar aí a nossa análise, porque é no momento que precede imediatamente aqueles acontecimentos que encontramos uma situação, embora madura, ainda não perturbada pela luta. Tanto mais fácil por isso é a tarefa do observador.
Vimos as condições gerais em que se constitui aquela massa popular — a expressão não é exagerada —, que vive mais ou menos à margem da ordem social: a carência de ocupações normais e estáveis capazes de absorver, fixar e dar uma base segura de vida à grande maioria da população livre da colônia. Esta situação tem causas profundas, de que vimos a principal, mais saliente e imediata: a escravidão, que desloca os indivíduos livres da maior parte das atividades e os força para situações em que a ociosidade e o crime se tornam imposições fatais. Mas alia-se, para o mesmo efeito, outro fator que se associa aliás intimamente a ela: o sistema econômico da produção colonial. No ambiente asfixiante da grande lavoura não sobra lugar para outras atividades de vulto. O que não é produção em larga escala de alguns gêneros de grande expressão comercial e destinados à exportação, é fatalmente relegado a um segundo plano mesquinho e miserável. Não oferece, e não pode oferecer campo para atividades remuneradoras e de nível elevado. E assim, todo aquele que se conserva fora daquele estreito círculo traçado pela grande lavoura, e são quase todos além do senhor e seu escravo, não encontra pela frente perspectiva alguma.
Um último fator, finalmente, traz a sua contribuição, e contribuição apreciável de resíduos sociais inaproveitáveis. É a instabilidade que caracteriza a economia e a produção brasileira e não lhes permite nunca assentarem-se sólida e permanentemente em bases seguras. Em capítulo anterior já assinalei esta evolução por arrancos, por ciclos em que se alternam, no tempo e no espaço, prosperidade e ruína, e que resume a história econômica do Brasil colônia. As repercussões sociais de uma tal história foram nefastas: em cada fase descendente, desfaz-se um pedaço da estrutura colonial, desagrega-se a parte da sociedade atingida pela crise. Um número mais ou menos avultado de indivíduos inutiliza-se, perde suas raízes e base vital de subsistência. Passará então a vegetar à margem da ordem social. Em nenhuma época e lugar isto se torna mais catastrófico e atinge mais profunda e extensamente a colônia que no momento preciso em que abordamos a nossa história, e nos distritos da mineração. Vamos encontrar aí um número considerável destes indivíduos desamparados, evidentemente deslocados, para quem não existe o dia de amanhã, sem ocupação normal fixa e descendente remuneradora; ou desocupados inteiramente, alternando o recurso à caridade com o crime. O vadio na sua expressão mais pura. Os distritos auríferos de Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso oferecem tal espetáculo em proporções alarmantes que assustarão todos os contemporâneos. Uma boa parte da população destas capitanias estava nestas condições, e o futuro não pressagiava nada de menos sombrio.
São estas, em suma, as causas fundamentais daquelas formas inorgânicas da sociedade colonial brasileira que passei em revista.”
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Mais em:
http://listadelivros-doney.blogspot.com.br/2016/12/formacao-do-brasil-contemporaneo-parte.html
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http://listadelivros-doney.blogspot.com.br/2016/12/formacao-do-brasil-contemporaneo-parte_8.html
e:
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