Stella F.. 23/01/2023
Duas visões
Dois rios
Tatiana Salem Levy - 2011 / 224 páginas – Record
Da mesma autora do excelente “A Chave de Casa” que li em 2011 e do livro “Vista Chinesa” que estava na primeira lista de finalistas do Prêmio Jabuti de 2022.
O livro vai nos mostrar a convivência de dois irmãos gêmeos que se adoram, Joana e Antônio, e aos poucos vai nos apresentando a história de seus pais, Aparecida e Jorge e sua relação com Dois Rios, vilarejo na Ilha Grande , RJ.
Dividido em duas partes: parte I, Joana e parte II, Antônio.
Joana conhece Marie-Ange na praia de Copacabana, uma francesa. Joana é irmã gêmea de Antônio, que depois da morte do pai se afasta da irmã, depois de muita amizade, e a culpa pela morte do pai. A mãe, Aparecida, possui um tipo de demência, uma obsessão em repetir determinados movimentos, principalmente nas pedras do calçadão de Copacabana, preto - branco, branco-preto. Joana cuida da mãe e se sente culpada por algo que não sabe definir. Não conseguiu sair de casa, abandonar a mãe, como fez seu irmão que largou tudo e visita a mãe esporadicamente, sem comprometimento.
Entre pequenos capítulos intercalados entre o namoro de Joana e Marie-Ange e o histórico familiar, conhecemos a história do casal Aparecida e Jorge.
Jorge visitava seu irmão, Eduardo, junto com sua mãe todos os finais de semana na Colônia Penal, em Dois Rios, Ilha Grande, Rio de Janeiro. Era época da ditadura e seu irmão foi preso por ser de esquerda. Jorge também era de esquerda, mas não se metia muito em política, tinha outros sonhos, ser médico. Em uma das visitas, conheceu Aparecida em Mangaratiba e foi atrás dela, até começarem a namorar e casar. E esse envolvimento fez com que os irmãos brigassem e não se falassem mais, porque o pai de Aparecida era um policial da Colônia Penal.
Aparecida e Jorge são de mundos diferentes e logo aparecem as insatisfações. Ele sempre intelectual, entre amigos e ela meio ressabiada, até desenvolver as suas obsessões. Um dia, enquanto as crianças passavam férias na casa dos avós maternos, em Dois Rios, o pai sofre um infarte e morre. As crianças se sentem culpadas, porque estavam tão felizes no dia que o pai morreu. Eles eram muito colados, viviam de mãos dadas, e prometendo um ao outro, não se abandonarem. Mas, logo depois da morte do pai, começam a se afastar e parece que tem algo no ar, um tipo de desejo por parte de Antônio.
Em paralelo, vemos Joana cada vez mais envolvida com Marie-Ange, querendo viver esse amor, e atribuindo a ela sua liberdade, que não havia sentido até então. E resolve, depois de muitas dúvidas, seguir com ela para a Córsega, para o vilarejo de Nonza, o que é estranhado pela mãe e pelo próprio Antônio, que apareceu de visita sem avisar. Ele espera sempre que ela cuide da mãe, e ele só participe das partes mais fáceis. Mas essa é a visão da Joana.
“Então, senti a maior liberdade que eu jamais experimentara: a liberdade de saber que não existe apenas o inferno, e que as histórias podem ser recontadas.” (pg. 11)
Vamos conhecer agora a do Antônio.
Devido ao que “ouvi” da Joana, comecei a segunda parte com um certo “preconceito” porque já achava o Antônio bastante egoísta. E acho que não deixei de achar após a leitura, mas tudo tem dois lados e vamos a eles.
Ele conhece Marie-Ange quando ela desiste de ir ao Brasil, como havia pensado, e resolve voltar à Córsega, para ver sua avó Batistine que está doente. Ele fica apaixonada de cara, e ela o convida para conhecer sua casa e família. Vivem por um tempo um grande amor, que parece que vai durar para sempre. Mas ela sai de barco, um dia sozinha, e não com o pai, como todas as manhãs. Ele sente algo no ar, pensa que ela não irá voltar, e fica sem saber o que fazer. Antônio pensa em Marie-Ange, e a descreve exatamente do mesmo jeito que a irmã Joana, dando ênfase as mesmas características físicas (recurso muito interessante usado pela autora).
Antônio continua em Nonza esperando Marie-Ange e aos poucos vamos conhecendo a versão dele dos fatos sobre a morte do pai, a vida conjugal dos pais e o porquê do afastamento dele da irmã, Joana.
Após esperar Marie-Ange por muito tempo, resolve descontar sua raiva na família dela, e por incrível que pareça, a partir disso eles acreditam nos seus sentimentos, e convivem melhor por um tempo. Antônio e Vincent (pai de Marie-Ange), passam a ir de barco pescar, sem anzol, peixes voadores. E Batistine, avó de Marie-Ange morre e ocorre um ritual de despedida característico da ilha.
Antônio resolve que deve voltar ao Brasil, e se dá conta, que por algum motivo, a namorada, e sua ausência sem explicações, o fez trazer à tona todos seus sentimentos em relação à família, sentimentos apenas colocados para baixo do tapete, mas que sempre estiveram lá, presentes. Uma escolha que fez, para não enlouquecer junto com elas, mas que teve um preço a ser pago. A solidão disfarçada de ocupação. Retorna ao Brasil para tentar se acertar com a irmã e com a mãe, mas para sua surpresa, Joana havia viajado. E o final do livro é nesse momento.
“Joana só me soltou quando estremeci, e da minha boca saiu um gemido leve, envergonhado. Ela me empurrou e pulou para trás, assustada, e foi se refugiar na água doce e fria. Não falamos nada, nem ela, nem eu, mas por dentro era só estranheza, pavor, culpa, estupefação, e era amor.” (pg. 167)
Mas sabemos pelo relato de Joana, que ela retorna de Dois Rios e o encontra em casa, e ele ao ver Marie-Ange fica surpreso e ao mesmo tempo dá a impressão de já conhecê-la. E nesse ponto, Joana vai para a Córsega com ela, e tudo leva a crer que se repete exatamente como com Antônio. O barco sai sem aviso, e não se sabe se vai voltar.
Marie-Ange seria um elo entre os irmãos que estavam presos em sua história triste: um ficou preso em casa e o outro saiu, mas estava preso à casa e as lembranças, mesmo achando que não.
Marie-Ange seria a liberdade deles, uma mulher sem amarras, que já havia até trocado de coração, feito um transplante, e vivia cada momento com intensidade.
Achei interessante o uso de alguns parágrafos exatamente iguais para os dois irmãos, seus sentimentos em relação à Marie-Ange, com algumas passagens muito poéticas.
Mas será que Joana não saiu de casa por covardia? Ou realmente só porque tinha que cuidar da mãe?
As escolhas são assim. Nem sempre sabemos por que as fazemos.