Luci Eclipsada 31/08/2017
Grata intrusão
Romance é um gênero da literatura surgido no século XVII e que rapidamente popularizou-se entre os que apreciavam a leitura de livros. Entre suas características podemos destacar a maneira híbrida como uma trama pode ser facilmente composta pela manifestação de outros gêneros textuais, como: novelas, cartas, narrativas de viagem e assim por diante; além, também, de possuir estilos e linguagens variadas.
O fato é que o Romance tal qual o conhecemos veio evoluindo e se reinventando através de subgêneros menores hoje tão utilizadas quanto à época em que foram criados. Assim, partindo do pressuposto de evolução do romance e o surgimento de subgêneros dentro deste grande gênero, temos o Romance Urbano, ainda chamado de Romance de Costumes, que nada mais é do que o romance que retrata uma determinada esfera social onde reproduz, por meio das palavras, os costumes da sociedade sem deixar de tecer críticas aos hábitos sociais. Dentro da literatura, este subgênero do Romance está ligado a Escola Literária Realista (Realismo) do século XIX, onde o narrador se coloca na trama como uma espécie de observador de seu tempo, enfatizando conflitos amorosos e problemas socioeconômicos.
No Brasil temos grandes escritos que representam com maestria o Romance Urbano/Costume, tais como José de Alencar e Joaquim Manuel de Macedo; mas, estes escritores são mais que conhecidos e consagrados; agora, o que pouca gente sabe é que temos entre esses grandes homens uma igualmente grande mulher, a desconhecida Júlia Lopes de Almeida, contista, romancista, cronista, teatróloga e, infelizmente, relegada a uma quase não existência sabe-se lá por qual razão.
Felizmente ainda é possível encontrar alguma coisa, bem escassa, produzida pela escritora e disponível na internet, além de alguns parcos títulos à venda em sebos; porém, também podemos nos deliciar, ao menos um pouco, com o fato de uma editora, ainda que pequena, ter se dedicado a lançar no mercado um dos romances de costume mais interessante que você lerá atualmente: A Intrusa (Editora Pedra Azul, 2016: 232 páginas).
No referido romance, o leitor é transportado a uma Rio de Janeiro do século XIX onde se concentra, praticamente, toda a elite brasileira da época já que esta era a capital da recém-instaurada República com suas grandes diferenças sociais. Na trama de Lopes, um rico, bem-sucedido, bonito e viúvo advogado, que prometera jamais casar-se novamente, decide contratar uma governanta para tomar conta de seu lar e, consequentemente, ensinar um pouco de bons modos a filha mimada que mora com os avós maternos, mas que vez ou outra desfruta de sua companhia. Apesar das críticas que recebe por cogitar inserir em seu lar uma mulher qualquer para cuidar de suas coisas e de sua filha, o advogado leva a ideia adiante e contrata, sob a condição de jamais ter contato com sua governanta, Alice Galba, uma jovem misteriosa que se mostrará muito acima das expectativas do advogado que, com o passar dos meses, começa a nutrir pela mulher, ainda que inconsciente, certa admiração, o que irá instigar o ciúme exagerado de sua ex-sogra que não admite em hipótese alguma que o ex-genro descumpra a promessa de nunca mais se casar feita a sua filha no leito de morte.
O Romance de Lopes consegue trazer todos os elementos dos romances urbanos que conhecemos, mas sob a ótica de uma mulher/escritora que com o olhar muito acurado de sua época consegue, mesmo sutilmente, pincelar questões sociais muito pontuais ao longo de todo romance, como o preconceito de uma sociedade predominantemente patriarcal e machista que era incapaz de ver com bons olhos uma mulher independente sem imaginar malícia por de traz de sua conduta.
"Não duvide! Uma governanta de casa de um viúvo só, vinda por anúncio de jornal... de ter ao menos um defeitozinho, e olha que o da curiosidade é quase virtuoso [...]" (p.129)
O preconceito racial enraizado na sociedade é outra questão levantada, prova disse é o personagem Feliciano, um negro que não apenas rejeita sua condição como exterioriza sua ira por ser quem é: negro.
"Revoltado contra a natureza que o fizera negro, odiava o branco com o ódio da inveja, que é o mais perene. Criminava Deus pela diferença das raças. Um ente misericordioso não deveria ter feito de dois homens iguais dois seres dessemelhantes.
Ah se ele pudesse despir-se daquela pele abominável, mesmo que a fogo lento, ou a afiados gumes de navalha, correria a desfazer-se dela com alegria. Mas a abominação era irremediável. O interminável cilício terminaria até que, no fundo da cova, o verme pusesse nua a sua ossada branca..." (p. 137)
De tudo o mais que o romance trata, temos uma brevíssima pincelada, também, nos aspectos políticos da nova república, uma questão que era de grande interesse da autora, mas que em A Intrusa não foi aprofundado, apenas representado pela inserção de dois personagens políticos dentro da trama que entre uma conversa e outra com o advogado Argemiro, por exemplo, fazem alusão as manobras políticas a que estão sujeitos para atingirem seus objetivos.
"[...]A ação de governar vai se tornando cada vez mais perigosa nesta terra... Nós temos maus auxiliares e o povo tem má fé... A oposição,m agora, serve-se de todos os meios para impedir-nos os passos, usando das asmas mais pérfidas, que são as do ridículo e as da calúnia..." (p. 118)
Enfim, Júlia Lopes de Almeida nos mostrou com este pequeno grande romance que é A Intrusa, o quão rica a literatura nacional teria sido se a mulher tivesse tido meios de produzir escritos ao invés de ter sido durante tanto tempo relegada a subserviência do lar, não que ser dona de casa seja algo ruim, longe disso, mas a mulher pode ir muito mais além disso. Veredito final: livro recomendado fortemente a todos e todas desejosas de livros escritos por grandes figuras femininas.
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