Paulo 19/01/2020
"Viver é muito perigoso"
Lembro quando escrevi aqui uma resenha do livro S. Bernardo, de Graciliano Ramos, dizendo que aquele livro era uma prova de que a leitura deve acontecer no momento certo de nossas vidas, e que se uma leitura no passado foi entediante ou improdutiva, ela pode muito bem ser excelente nos dias de hoje. Pois eu senti a mesma coisa com esta obra-prima de Guimarães Rosa; essa foi a minha segunda tentativa de ler Grande Sertão: Veredas. A primeira foi mal sucedida porque eu tive imensa dificuldade em ler o livro da forma como ele foi escrito. Já nesta segunda tentativa eu tive as mesmas dificuldades iniciais, mas continuei lendo, e quando necessário voltando alguns parágrafos com calma, até chegar uma hora em que o estilo da escrita não fosse mais uma dificuldade, mas sim uma particularidade. Quando peguei o jeito de ler este livro, a linguagem se tornou para mim tão natural e a leitura andou leve até a última página. Ou como Paulo Rónai escreveu em Três Motivos em Grande Sertão: Veredas: "Como prêmio do esforço exigido pela leitura, saímos dela com a impressão de termos participado um pouco da obra de ficção, de termos compartilhado não só as vicissitudes das personagens, mas também a alegria criadora do autor." E isso é bem verdade.
O livro é escrito em primeira pessoa. O personagem principal, Riobaldo, vai contando a alguém suas memórias de antigamente, com certo saudosismo às vezes, de quando ele era jagunço pelo sertão brasileiro. Essa outra pessoa que ouve a narração nunca fala durante o livro, mas pelas falas do Riobaldo sabemos que ele está conversando com alguém culto e "instruído".
No decorrer da obra vamos viajando com Riobaldo neste terreno tão vasto que é o sertão, os gerais, ali no norte de Minas Gerais, Goiás e sul da Bahia. E no trajeto de suas memórias vamos nos deparando com histórias de ver como o ambiente molda as pessoas que ali estão. "O sertão está em toda parte."
Ele conta histórias fora do tempo cronológico, então acontece de ele narrar um episódio de sua vida e voltar no tempo para narrar como esse fato chegou a ser. Por exemplo, ele conta como fazia parte do grupo de jagunços de Medeiro Vaz que estavam à caça dos Judas, e só depois descobrimos como bem antes disso Riobaldo entra no mundo da jagunçagem, e como esse judas mataram o antigo chefe dos jagunços.
As indagações psicológicas e metafísicas de Riobaldo me deixavam às vezes surpreso, e me surpreendia também o contraste do ex-jagunço que ele era, narrando a história para um, segundo ele, ouvinte letrado e culto. Ora, mas qual inteligência é melhor do que aquela chamada de Experiência de Vida? E Riobaldo, relatando suas memórias, aquilo que ele viveu e viu, se mostrou alguém inteligente e esperto de igual forma, moldado conforme às circunstâncias de sua vida.
No decorrer da narração vemos dois mistérios no ar: um é a relação de Riobaldo com Diadorim, relação tão próxima e afetuosa, mas com segredos dentro de ambos; e o outro mistério, mais sutil, é a insistência de Riobaldo em saber da existência do Diabo (o Tinhoso, o Sujo, o Cramulhão, o Que-não-ri, etc), um assunto que ele parece evitar durante toda obra, até saber que aquele que o ouve tem total mente aberta para ouvir a estranheza do fato que ele vai detalhar: "O diabo na rua, no meio do redemoinho..." O que seria mais uma genialidade de narrar o estilo daquele sertanejo, do jagunço, suscetível às superstições (ou à realidade do desconhecido).
Enfim... é um belo livro. Foram mais de seiscentas páginas de uma história rica em termos regionais, em ambientação, descrição do mundo e das pessoas, aventuras, mistérios e memórias. Sem linha cronológica, a história é um vai-e-vem de acontecimentos que ao longo da obra vai se encaixando e formando o cenário completo daquilo que foi. Até porque, por se tratar de um relato de memórias, a história está sujeita às falhas humanas inevitáveis, como qualquer um de nós contando algum relato de nossas vidas.
É certamente um dos melhores livros brasileiros que eu já tive a chance de ler.