Ladyce 14/01/2012
O conflito entre o novo e o velho
Foi com grande prazer que descobri, no final do ano passado, o lançamento do romance O PINTOR DE LETREIROS, de R. K. Narayan (Índia, 1906-2001), publicado pela Editora Guarda-Chuva:2011. A apresentação de Narayan ao público brasileiro era devida e necessária. Sua obra já está alinhada entre os clássicos da literatura indiana assim como da literatura de língua inglesa. [Para ilustrar, a minha edição desse romance, em inglês – The Painter of Signs-- foi publicada pela Penguin, coleção Clássicos do século XX, em 1982], tal é sua importância.
Muito de sua obra me atrai, mas principalmente o fato de não haver respostas aos problemas apresentados, não haver soluções fáceis. Os romances de Narayan têm a característica de apresentarem no cotidiano, enfrentados por pessoas comuns, moradoras da fictícia Malgudi — um vilarejo que cresce, cresce até formar uma pequena cidade, isso através de volumes de sua obra – e terminarem sem respostas fáceis. Narayan é um daqueles escritores indianos formados na época em que a Índia ainda fazia parte da Comunidade de Nações Britânicas. Sente-se em sua narrativa o contato íntimo com o melhor da literatura inglesa. Entre essas características está o descrever de um todo, de um problema complexo, às vezes até político-social, pelos conflitos e resoluções de personagens menores, mas que no final são quem realmente irão resolver, no dia a dia de suas fainas, as mudanças necessárias para uma solução aceitável. É o indivíduo, o homem comum, com todas as suas idiossincrasias que aparece agindo pelo todo. É como se os romances fossem a respeito de nada, porque não há eventos, ações, momentos grandiosos. Não há heróis, nem grandes conquistas. Tudo parece muito corriqueiro e diário, mesmo quando se trata de uma mudança de grandeza social. É com o homem comum, com a pessoa de pequeno porte, a formiguinha trabalhadora e mantenedora dos princípios sociais, religiosos e morais, é através desses personagens, tomando pequenas decisões, que o romance e os leitores se transformam.
E é o humor de Narayan que serve de porta de entrada ao nosso mundo e nos transforma. Com uma narrativa irônica e bem-humorada vemos, em O pintor de cartazes, as dificuldades de Raman. Participamos de suas dúvidas, de seus anseios e principalmente de sua incompreensão a respeito da mulher amada. Isso porque solteiro inveterado, na terceira década de vida, esse pintor de cartazes, educado na universidade, vê sua existência como exemplo de um ser pensante de uma racionalidade quase cartesiana. Mas em seu destino aparece Daisy, a moderna, independente jovem trabalhadora, que com zelo missionário, tenta educar, persuadir e revolucionar os habitantes de pequenas cidades e vilarejos a usarem de planejamento familiar para controlar com sucesso os números do crescimento populacional da Índia. Esta é a vida moderna. A Índia de hoje. Raman, não tem dificuldade nenhuma em aceitá-la. Apaixona-se por ela… Moderna, instigante, livre, dedicada e inescrutável. Mas será que ela se apaixonaria também por alguém tão pouco fervoroso sobre o futuro?
Em casa, Raman tem o exemplo de outra nação. Lá está diariamente sua tia, que dedicou toda sua vida à educação e ao crescimento de Raman emocional e intelectual, que se sacrificou pela família, pelos valores e pela memória dos antepassados. Com suas idas diárias ao templo, sua comida em forno de barro, com suas histórias do passado, ela é o mundo de onde ele veio, a Índia com toda a tradição cultural milenar. Preso entre dois amores, seu mundo desaba, não sem antes termos deliciosos momentos de humor e ironia na trama.
Narayan nos dá a dimensão precisa das mudanças que ocorrem na Índia da década de 1970, quando por esforço governamental de grande magnitude, a necessidade de controle da natalidade foi colocada em destaque. Ele nos mostra como a tradicional cultura indiana recebe essas mudanças. São abordados assuntos complexos tratado numa linguagem clara, límpida, sem rebuscados artifícios. Justamente por isso conseguimos pensar na complexidade de pequenas decisões diárias que afetam ou são afetadas pelo todo. O charme de O PINTOR DE LETREIROS é característico do autor: não está na trama – que é de uma simplicidade quase ingênua – mas nos retratos dos personagens, nas descrições que nos levam de início ao fim, às vezes com um tênue sorriso nos lábios, ocasionalmente um riso comedido e espontâneo, até o fim da leitura.
A publicação em português está excelente. Vale a pena enriquecer as suas férias, os seus dias de verão, com essa leitura leve e significativa de um clássico autor indiano.