Krishna.Nunes 29/08/2021Reflexivo e instigantePais e Filhos está tão ligado ao que se passava em sua própria época que é necessário conhecer um pouco do contexto histórico para compreendê-lo. Ao mesmo tempo, é uma obra atemporal e se conecta com os dias de hoje. Dá para perceber que o autor era um homem erudito e moderno, que estava a par do que acontecia tanto na Europa quanto na Rússia, que se interessava por política e estava atualizado com o que era relevante nos campos da ciência e da filosofia no seu tempo.
A narrativa se passa no início da década de 1860, logo depois da abolição da servidão na Rússia. Até então, o país era muito rural e não havia passado pela onda de industrualização que acontecia na Europa. Num esforço para modernizar a nação e torná-la mais próxima da Europa, o imperador vinha implantanto uma série de reformas. Nos últimos 20 anos, a Rússia havia se modificado tanto que duas gerações de pessoas, apesar da diferença de idade não muito grande, se tornaram completamente opostas. A geração de 40, como era chamada aquela que tinham passado sua juventude na década de 1840, era representada por fidalgos e nobres da antiga aristocracia ligada à posse de terras e às origens familiares. Já a geração de 60, daqueles jovens que cresceram durante os anos de 1860, era composta por intelectuais progressistas que queriam romper com tudo o que consideravam antiquado.
Nesse contexto de transformação, os servos eram basicamente trabalhadores do campo e a servidão era um sistema muito parecido com o de escravidão que vigorava no Brasil. Diferente do que aconteceu aqui, porém, os servos libertos receberam terras para trabalhar ou tornaram-se trabalhadores assalariados. As condições de trabalho, entretanto, se mostraram insatisfatórias e a escolha de muitos servos emancipados foi de migrar para as cidades, tornando-se operários da indústria. O livro nos mostra como os proprietários de terra estavam trabalhando exatamente nessa transição, dividindo suas antigas propriedades e questionando se aqueles camponeses seriam capazes de trabalhar por conta própria.
A narrativa trata do jovem Arkádi, de 22 anos, que acabara de se formar na universidade na capital e retornava à casa de seu pai, no campo, trazendo consigo seu melhor amigo e mentor, Bazárov, um estudante mais velho que também se dirigia para uma temporada na casa de seus pais.
O pai de Arkádi, Nicolai, era um homem bom e afetuoso, que tentava se entrosar com os amigos de seu filho, e gostava de ler e estudar para manter-se informado e atualizado. Com ele morava Pável, seu irmão mais velho, um militar aposentado, de pensamento conservador e hábitos aristocráticos, que guardava uma grande amargura causada por perdas no passado.
Bazárov, que era bastante arrogante e que se dizia niilista, demonstrava completo desprezo pelas tradições, pelas autoridades e pelas instituições, inclusive a religião e a família. A presença de Bazárov no meio da família de Arkádi é o estopim do conflito entre gerações de que trata o livro. As opiniões niilistas do estudante conflitavam diretamente com o pensamento do tio Pável, provocando discussões acaloradas, em que o militar não conseguia controlar a irritação. Já Nicolai, que na maioria das vezes tinha espírito apaziguador e tentava manter a tranquilidade no seio da família, acabou ficando muito magoado ao ouvir, acidentalmente, uma conversa entre o filho e o amigo. Apesar de seus esforços para não ficar ultrapassado, descobriu que era considerado pela geração mais jovem um homem antiquado, ignorante, "uma carta fora do jogo".
O autor tentou não tomar partido (pelo menos explicitamente) de nenhum dos lados. Ele criou personagens vivos e com personalidades próprias e, com uma linguagem muito poética e um cenário bucólico, acabou publicando uma obra que foi um sucesso estrondoso, mas contraditoriamente não agradou a ninguém. Os mais velhos achavam que o livro era um incentivo ao niilismo, enquanto os jovens enxergavam que ele favorecia a geração mais antiga. A impressão que dá é que ambos os lados tinham tantos defeitos que não suportaram a maneira precisa como foram representados no romance. Assim, o autor criou desavenças no meio dos intelectuais da época e foi acusado de estimular os protestos e conflitos que pipocavam pela Rússia, que na verdade tinham origem na insatisfação dos servos emancipados com as novas condições de trabalho, no que eram apoiados pelos estudantes. O fato é que o autor critica tanto o niilismo da moda quanto os valores conservadores e patriarcais da antiga Rússia.
Talvez o descontentamento maior dos jovens da época com livro se deva ao fato de que ele tenta deixar uma certa "moral da história" no final, que pode até ser interpretada de outras maneiras, mas parece dizer que o amor supera as ideologias e os rótulos, e que se deve valorizar a felicidade nas coisas simples.
Pais e Filhos é um retrato da Rússia semi-urbanizada em meados do século XIX, explorando os pontos de vistas de várias camadas daquela sociedade. Uma leitura reflexiva, que deixa o leitor órfão assim que termina de ler a última linha.