Paulo Sousa 14/04/2020
livro lido - Há quem prefira urtigas
Leitura 17/2020 [Lista 1001 livros]
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Há quem prefira urtigas [1928]
Orig. Tade kuu mushi
Junichiro Tanizaki (Japão, 1886-1965)
Companhia das Letras, 2003, 192 p.
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?Aqueles minutos preciosos, serenos, mostravam de modo incongruente que, livres da necessidade de representar, restava-lhes ainda alguma coisa que lembrava uma relação conjugal harmoniosa. Ambos sabiam que o momento era fugaz, mas queriam desfrutá-lo plenamente, descansar por momentos da fadiga de suas vidas? (p.75).
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Junichiro Tanizaki é um senhor escritor que, pelas suas letras, soube descrever e mostrar um Japão cheio de poesia, saudade e beleza. Mas também, apesar da geração em que viveu, soube tratar, como grande escritor engajado, com a inevitável ruptura da cultura japonesa antiga, que foi se rendendo para o ocidental modo de viver.
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É o que esta pequena novela aborda: num país onde o senso de moralidade, honradez e dignidade foram cultuados até a algumas das primeiras décadas dos anos 90, o autor aborda a maneira como duas culturas vão se misturando e delas se vê a aglutinação de certos costumes e o surgimento de outros. Acompanhamos o drama de Kaname e Misako, um casal que não se entende mais, cada vez mais voltados para suas vidas singulares, cada um mantendo uma infidelidade consentida e que chegam à decisão de que o divórcio porá fim à farsa que mantém sobretudo ao velho pai de Misako, um ancião à antiga que criou a filha nos moldes tradicionais. O autor nos faz acompanhar as angustiosas vidas dos dois em terceira pessoa, que buscam se livrar das amarras de uma sociedade que julgam, cada à sua maneira, atrasada e retrógrada.
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É claro que não se pode abrir mão da sua origem assim de uma hora para outra, e é justamente através do velho pai de Misako que Tanizaki descreve o lado mais tradicional do Japão. Desde os objetos enegrecidos pelo tempo quanto as requintadas apresentações do teatro de bonecos japonês, vamos sendo brindados com a pena atenta do escritor que busca mostrar justamente a antítese de um pais em lenta modificação, que busca a duras penas manter intacta uma cultura trazida desde tempos imemoriais.
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O drama do casal, ficamos sabendo, é o pano de fundo para questões bem mais profundas, pelos quais o romance transita. Vai tratar do problema do choque de cultura, a cuja modernidade ocidental tenta romper, e aos profundos costumes patriarcais os quais sempre imperaram. E tem muito mais. Têm-se a figura da mulher submissa ao marido (Ohisa, a quase gueixa do velho pai de Misako), a prostituta Louise, que busca extrair o máximo de dinheiro de Kaname, e a busca pelo amor livre e desimpedido de Misako, que nutre a esperança de se casar com seu amante Aiso, relação da qual Kaname sabe e incentiva. Entre as brechas dessas partículas há o filho do casal, assustado com a possibilidade de ver sua vida estável ser destruída e o primo de Kaname, um empresário de Tóquio, que tenta ajudar os dois a atingirem seu objetivo de separação.
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De Tanizaki eu já tinha lido um muito bom ensaio, ?Em louvor da sombra?, um relato muito bonito sobre a noção de estética japonesa que, segundo o autor, estaria justamente no culto aos objetos enegrecidos pelo uso, à manutenção de ambientes pouco iluminados e, por isso mesmo, causa de contemplação e enlevo. O livro ora lido, cuja temática é mais trágica que estética, não perde essa veia, com tantas descrições de pratarias, vestuário e culturais de um Japão que inevitavelmente está se rendendo a costumes do outro lado do mundo, vindo a adotar o jazz americano e a possibilidade de romper as amarras de um patriarcalismo austero causador de tantas dores e relações insensatas. Grande Tanizaki!