Ricardo Silas 23/02/2017
II - A realeza micênica; III - A crise da soberania
Embora eu tenha lido o livro inteiro, publico abaixo apenas uma resenha crítica dos capítulos II e III, que escrevi para um trabalho acadêmico:
No livro As origens do pensamento grego, o autor Jean-Pierre Vernant se baseia em evidências disponíveis para explicar os ícones que engendraram a cultura grega, tanto nos aspectos marcados pela tradição mitológica quanto no processo que favoreceu o surgimento da Filosofia clássica. A princípio, Vernant sintetiza os precedentes da expansão micênica, ocorrida entre o período de 1500 a 1100 a.C., cuja frente era formada por “invasores” que viviam na Idade do Bronze e falavam o idioma indo-europeu. O segundo capítulo do livro aborda o momento posterior à chegada dos micenos em território grego, por volta de 1900 a.C., onde eles consolidaram uma concepção de governo palaciano no qual toda a vida social, religiosa e militar dos súditos orbitava a autoridade do rei e seu palácio. De acordo com Vernant, a figura real, ou o ánax, “concentra todos os elementos de poder e todos os aspectos de soberania”. Entretanto, a organização hierárquica dessa sociedade incluía outros símbolos de “poder”, ainda que inferiores ao soberano, tais como os inspetores e escribas, que tinham por função auxiliar o rei no controle das instituições sociais. Um caso peculiar sobre os escribas é que eles detinham o monopólio da escrita local e, por meio dela, executavam tarefas relacionadas a arquivos de contabilidade comercial, militar e até mesmo o que envolvesse rituais religiosos.
Na época, a economia grega tinha traços majoritariamente rurais, e qualquer tipo de negociação envolvendo cabeças de gado, medidas de trigo, produção de bens ou distribuição de armas para os soldados era supervisionada e contabilizada pelo escriba –a mando do rei. A crise do regime micênico, no entanto, começa a surgir a partir de 1200 a.C., quando os dórios, ou “gregos do norte”, se expandem no Peloponeso, em Creta e em Rodes. Não se sabe com precisão se a expansão dórica foi responsável pelo declínio de Micenas. Seja como for, sabe-se que, com o colapso do regime palaciano, algumas tradições mudaram radicalmente o mundo grego da época. No terceiro e breve capítulo de seu livro, Vernant destaca, por exemplo, a passagem da Idade do Bronze, anteriormente atrelada aos micenos, para a Idade do Ferro manipulada pelos dórios. Mas a queda da realeza micênica não resultou somente em mudanças de aspecto belicoso, já que as armas metalúrgicas eram mais resistentes do que as de bronze. A noção de arte, inclusive, também foi modificada. Basta observar que as ilustrações de elementos naturais em objetos de cerâmica, tidas quase como um padrão, deram lugar a novos desenhos e formas geométricas. Foi nesse contexto que a obra Ilíada começou a se desenvolver, revelando que a presença dos deuses em suas relações com os humanos não mais estariam encobertas em mistério.
Outro aspecto digno de nota é a rejeição da figura do ánax pela nova cultura grega. A realeza micênica abre alas para uma forma rudimentar de aristocracia. A ordem política, econômica, social e religiosa não mais estaria concentrada na figura de um rei, mas sim dividida conforme suas “funções sociais especializadas”. Ou seja, enquanto que na sociedade micênica a soberania era monopólio de um indivíduo, na Grécia pós-micênica ela se fragmenta nas mãos de líderes sacerdotais, generais militares e agricultores. É claro que essa divisão trouxe problemas. Sem a centralidade do ánax, o autor questiona como os conflitos envolvendo os “novos poderes” seriam resolvidos. Não é em vão que, ao longo desse período, se inicia a tradição política de resolver os conflitos de interesses por meio da oratória, ou seja, um “combate de argumentos cujo teatro é a ágora, praça pública”, que certamente culmina no tão estimado fenômeno da democracia ateniense. O que se segue após o terceiro capítulo complementa a proposta inicial do autor: explanar, do ponto de vista histórico, quais acontecimentos se relacionaram de perto com a origem e o desenvolvimento do pensamento grego.
Não são poucos os historiadores e pesquisadores que tentam reconstruir a história vivida pelas civilizações da Antiguidade. Nesse ramo de estudo, as inúmeras expedições arqueológicas já realizadas contribuíram com descobertas de plaquetas de barro, vasos de cerâmica, pinturas e outros artefatos antigos que, de certo modo, contêm alguns fragmentos sobre a organização política, religiosa e cultural dos povos antigos. Mesmo que os indícios às vezes aparentem ser abundantes, é preciso ter em mente que as lacunas em nosso conhecimento atual são ainda mais numerosas. Os indícios, na maioria dos casos, representam não mais do que uma ínfima parte de uma grandiosa e complexa sociedade que, embora tenha influenciado as gerações futuras, não mais pode ser inteiramente descoberta sobre seu passado. Ler a obra “As origens do pensamento grego”, de Jean-Pierre Vernant, foi uma ligeira e modesta demonstração de como os historiadores experimentes lidam com tais problemas, sobretudo na área da História Antiga. É um trabalho árduo, difícil, mas enobrecedor.