Leonel Cupertino 07/02/2020
História do Brasil com jeito de romance
Com muita satisfação e entusiasmo concluí o romance "Elos da Mesma Corrente" em poucas semanas.
O livro da autora Rosarita Fleury nos apresenta o cotidiano da influente e abastada família Prado Vilhem, detentora da fazenda Santa Lúcia, às margens do rio Fartura, que é onde se desenrola boa parte da história.
A família é chefiada pelo coronel Alfredo, um político com influência suficiente para levá-lo ao cargo de senador do império.
A história se passa no final do Século XIX, portanto, acompanhamos as mudanças causadas pela abolição da escravidão e pela proclamação da República no longínquo sertão goiano.
Alfredo é casado com Ângela, e ambos constituíram uma imensa família. Seus filhos são muitos, mas a história destaca sobretudo as trajetórias de Isabel, cuja decepção com o amor transfarmou-a numa espécie de solteirona inveterada; Ernesto, o vilão da nossa história; Arabela, Carolina, Cristina e Madalena. Outras filhas, mais jovens, só ganham algum protagonismo ao final da narrativa.
O cotidiano da família Prado Vilhem nos transporta à lida na roça sob as perspectivas masculina, com a sisudez de Ernesto e Alfredo, e feminina, com as frequentes expectativas das filhas na busca pelo vestido perfeito, que as levaria, em consequência, ao marido perfeito.
Também são cenários da narrativa o Palácio Conde dos Arcos, com seus famosos bailes; as igrejas com o repicar dos seus sinos; o cajazeiro ainda presente na Praça do Jardim; o colégio Sant'Ana e a língua ferina do povo - esta, aliás, mantém-se a mesma desde aqueles tempos.
Sob a escrita de Rosarita, a relação de sinhazinhas e escravos é escancarada e romantizada. "Nhônhô e sinhá Anja" como se referem as escravas da casa ao casal dono da fazenda Santa Lúcia, são figuras quase santas na visão dos negros, por serem pacientes e não praticarem violência e castigos contra seus empregados. Ao longo do romance, é desenvolvida uma espécie de relação quase familiar entre essas classes sociais tão escancaradamente distantes.
A mulher é submissa aos maridos. Criadas para servir aos homens e para ter apenas o mínimo de educação formal. Nesse aspecto, a personagem de Isabel, solteira e responsável por auxiliar o pai nos assuntos da fazenda, rompe um paradigma ao conquistar sua independência ao custo de uma amarga solidão. Ela também é pintada como uma personagem de traços predominantemente masculinos.
Apesar do mundo doméstico simples entre vestidos, doces, banhos no rio Fartura e orações, a narrativa de Rosarita é, dentro do possível, bastante ágil. As personagens são cativantes e o relato dos hábitos da cidade de Goiás num tempo tão distante - como os passeios sempre acompanhados por escravas das moças, o cumprimento " 'sus Cristo" dos escravos às sinhazinhas, que eu desconhecia por completo, e até mesmo orações para espantar medos ou bichos peçonhentos - faz dessa obra de ficção um elemento de análise histórica.
Além de tudo isso, é muito mais fácil imaginar cenários que pouco ou nada mudaram com o passar dos séculos, e que a gente conhece tão bem. Isso sem dúvidas torna a leitura mais fácil e prazerosa.
Um romance rico em história e regionalismo, com a ternura e sensibilidade necessárias, tudo na dose certa.