MF (Blog Terminei de Ler) 17/01/2021
Quando a literatura tenta preencher as lacunas da história
Nota inicial: Como a edição que li não está no Skoob, deixo a presente resenha na edição da Iluminuras, por entender que a diferença está apenas na tradução.
“A cruzada das crianças” do escritor francês Marcel Schwob. Originalmente escrito em 1896, trata-se de um conto que se debruça sobre um dos episódios mais nebulosos da história, onde fatos e fantasias acabam se misturando.
A HISTÓRIA NEBULOSA E O CONTEXTO HISTÓRICO
Em meados do ano de 1212, durante a Idade Média, milhares de crianças e adolescentes marcharam de regiões da Europa em direção ao sul da Itália, com o objetivo de atravessar o mar Mediterrâneo e chegar até a cidade de Jerusalém, visando converter os muçulmanos que dominavam a região à fé cristã. Essas crianças seriam lideradas por um jovem, supostamente visitado pelo próprio Jesus Cristo. Por terem coração puro, sem pecado, as crianças seriam ideais para reconquistar a “Terra Santa”.
Foram duas grandes movimentações registradas. Na primeira, que teria partido de regiões da Alemanha, passando pelos Alpes até a cidade de Gênova, eram em torno de 7.000 crianças, lideradas por um garoto de 10 anos chamado Nicholas. Ao chegarem às margens do Mediterrâneo, as águas não se abriram (tal como no mito judaico-cristão), apesar dos comandos de Nicholas. O grupo se espalhou pela Europa, após o fracasso da profecia, tendo alguns poucos voltado para casa. Alguns partiram para Marselha onde, provavelmente, foram vendidos como escravos. Ninguém chegou à Palestina.
No segundo movimento, um jovem pastor chamado Estevão de Cloyes, espalhou a notícia de que era portador de uma carta escrita por Jesus Cristo para o então rei da França, Felipe II. Conseguiu atrair uma multidão, em torno de 30.000 crianças e, na região de Saint-Denis, teria praticado milagres. O monarca enviou ordens para que o grupo fosse dispersado. Fontes da época não mencionam quaisquer planos de um êxodo em direção à Jerusalém.
Há quem diga que aproximadamente 50.000 crianças teriam perdido a vida nessas movimentações. Outros dizem que, após um dos grupos ter chegado ao Mediterrâneo, foram convencidos a embarcarem numa frota de sete navios. Duas embarcações naufragaram e as restantes foram desviadas para Alexandria, onde as crianças foram vendidas como escravos.
Dentre as controvérsias, há quem diga que não eram apenas crianças, mas homens jovens boa parte dos grupos. Outras fontes sugerem que pessoas de todo tipo, homens, mulheres, crianças e idosos, compunham o grupo. De fato, em meados do século XIII, dentro do contexto de fim do sistema feudal, houve a migração de grupos de camponeses de origem francesa e alemã, que tiveram que vender suas terras. Tais grupos eram chamados de ‘pueri’ (rapaz, em latim). Posteriormente, as abordagens envolvendo o puer Nicholas e o puer Estevão foram fundidas num relato único, onde o termo pueri foi traduzido para ‘crianças’.
Há quem veja esse episódio da cruzada das crianças relacionado com a lenda do flautista de Hamelin, imortalizada pelos irmãos Grimm, dentre outros. Na história, a cidade alemã de Hamelin sofre com a infestação de roedores. Um flautista, de roupas coloridas é contratado para se livrar da praga, tocando uma flauta mágica. Quando os moradores se recusam a pagar pelo serviço feito, o flautista toca seu instrumento mágico, fazendo as crianças da cidade irem embora para longe. Tal história pode ter sido inventada para mascaram a adesão de jovens à cruzada das crianças e, nessa versão, o flautista seria um mero recrutador ou o próprio líder do movimento.
Todo esse episódio, cheio de versões contraditórias, omissões, etc., ocorreu dentro do contexto histórico das chamadas “Cruzadas”, que se iniciaram no ano de 1095 e duraram até o ano de 1492, sempre com o intuito de conquistar para os cristãos a cidade de Jerusalém, ocupada nos séculos anteriores pelos muçulmanos, religião que vinha em plena expansão, após o surgimento de Maomé.
A OBRA
O texto de Schwob é escrito em forma de depoimentos fictícios, de forma polifônica. Personagens anônimos, papas e as próprias crianças dão seu relato sobre a cruzada e, por meio dessa teia de versões, o leitor constrói sua interpretação do episódio.
Interessante observar como Schwob inclui interessante nuances no tom dos depoimentos. Os dois papas que aparecem na obra demonstram, ao meu ver, uma certa arrogância e soberba diante do episódio. Por sua vez, as crianças expõem sua inocência em cada frase.
Há um elemento comum que aparece ao longo dos relatos: a cor branca. Popularmente associada à pureza, ela é perfeita para representar as crianças que, igualmente, se vestem de branco. Além disso, o próprio Cristo, presente na crença das crianças, evidenciada em suas respostas quando indagadas sobre sua missão, é representado na cor branca, o que sugere tanto a inocência da fé, quanto o próprio objeto do culto, representação máxima da ausência de pecado.
Naturalmente, a cor branca pode ser encarada de diferentes modos. Num primeiro momento, ela é vista como algo positivo: a pureza, a inocência, a ausência de pecado, a fé. Por outro lado, quando lembramos que essa fé conduziu esses inocentes à desgraça, pelo fanatismo e/ou obscurantismo, a cor branca torna-se negativa, sinônimo de perigo.
Pode-se dizer, igualmente, que o grande mérito de Schwob é sua tentativa de preencher as lacunas deixadas pela História, utilizando-se um aparato literário interessante. Somente assim, é possível conceber uma plausibilidade para o episódio, tentando se vislumbrar, um pouco, como que adultos poderiam ter permitido que algo dessa natureza tenha ocorrido, sem que qualquer ação fosse tomada.
EDIÇÃO E CONCLUSÃO
A presente edição que li é uma tradução independente, feita por minha amiga, a professora Fernanda Barros. Os quatro primeiros relatos foram traduzidos do francês e os relatos posteriores, por sua vez, foram traduzidos do inglês. O texto traduzido é fluído e capta variações de tons, a cada mudança de personagem, o que evidencia a preocupação com a composição textual de Schwob, bem como, naturalmente, o zelo da tradução.
“A cruzada das crianças” é uma leitura interessante, que permite a reflexão e um olhar instigante para esse período tão obscuro da história humana.
Em tempo, a presente obra ganhou uma edição recente da Editora 34, com tradução de Milton Hatoum.
FICHA: SCHWOB, Marcel: tradução de Fernanda Barros. A cruzada das crianças (1896). Independente, 2020, 15 páginas. Título original: La croisade des enfants / The children’s crusade.