Stella F.. 30/10/2023
Contos sobre a maldade humana
Um homem bom é difícil de encontrar e outras histórias
Flannery O'Connor - 2018 / 224 páginas - Nova Fronteira
“Se lidos só pelo enredo, os contos de Flannery O’Connor podem causar a impressão de que fazem a apologia da desgraça. Em suas criações tão bizarras, porque tão diferentes dos padrões costumeiros, nada em geral termina bem, e banhos lancinantes de sangue ou o fragor das desilusões e derrotas são das normas mais constantes na maquinação dos desfechos. [..] Lidos no entanto como invenções literárias, com seus muitos valores sobrepostos à mera evolução linear do enredo, os contos de Flannery são afirmações modelares de um espírito invulgar e de um olhar como poucos.” (Leonardo Froés, pg. 7)
Flannery nasceu em Savannah, na Geórgia em 1925. Perdeu o pai para o Lúpus, doença que ela também vai ser diagnosticada e morrer em 1964 com 39 anos, após muito tempo de reclusão na fazenda da família, onde escreveu muitos dos contos que constam dessa obra.
Os temas se repetem e as descrições dos personagens são muito importantes na ambientação dos contas, estando sempre presente a perversidade humana, a religião, Deus, descrições muitos peculiares da paisagem, diferente de tudo que já foi visto e um certo humor ou escárnio, em meio a tanta maldade. Alguns contos são realmente de horror, ou são apenas a personificação de uma maldade inerente ao ser humano.
“Um dos principais expoentes do chamado “gótico sulista”, Flannery retrata em suas obras a decadência do Sul americano, as complexidades da relação entre homem e Deus e a aridez espiritual dos tempos modernos como a tendência do homem à brutalidade e à perversidade num mundo necessitado de graça divina.” (pg. 219)
O conto “Um Homem bom é difícil de encontrar” é um verdadeiro filme de terror, e a figura de Jesus aparece com muita frequência. Uma família resolve ir viajar, e tentam achar um caminho para um determinado local, mas infelizmente está acontecendo uma fuga de uns bandidos, psicopatas, e eles estão no lugar errado e na hora errada. Os membros da família tentam dissuadir o homem, tentam convertê-lo, mas ele segue com seu plano de exterminar a todos. Muito bem escrito e além de impactante, não dá para parar de ler até saber o final.
No conto “O Rio”, que marquei como um dos que gostei, há um menino que é levado até um rio em um pequeno vilarejo por uma cuidadora, já que ele é negligenciado pelos pais. Ele chega nesse rio e há um tipo de pastor batizando as pessoas e o tema recorrente de Jesus. Ele fica impressionado, chama a atenção e é também batizado e inventa um nome. Volta para casa, mas depois que os pais brigam com ele por ter inventado um nome e outras coisas, ele decide sair de casa e seguir o mesmo rumo de antes, e chagar ao rio para ele mesmo se batizar. Um final surpreendente!
O conto “A Vida que você salva pode ser a sua” que gostei bastante, achei mais leve. Aqui encontramos a falta de caráter do ser humano, que já faz as coisas pensando em levar algum tipo de vantagem e se aproveita da fragilidade de alguns e da ambição de outros.
Gostei muito do conto “Um templo do Espírito Santo”, mas o meu preferido continua sendo “O negro artificial”. Temos um avô que leva o neto para conhecer a cidade grande e acontecem muitas coisas pelo caminho. Logo ao entrar no trem há um homem pardo e segundo seu avô era o “primeiro negro” do neto. E o menino indignado disse a ele: “O senhor falou que os negros eram pretos”, disse com voz zangada. “Nunca falou que eles são pardos. Como é que vou entender, como vou saber uma coisa, se não me explica direito:” (pg. 98) Ao final eles se perderam pelos bairros da cidade, entrando na periferia com muitos negros, e precisavam da referência para voltar à estação, e o avô e neto se perdem, e o avô finge não conhecê-lo, mas o neto o segue porque não tem opção. Muitas reflexões interessantes e ao final veem uma estátua que chamam de “negro artificial”.
No conto “Um círculo de fogo” gostei do enredo, mas achei o final meio hermético.
“Um último encontro com o inimigo” não achei nada demais. É meio engraçado e trágico ao final.
O conto “Gente boa da roça” que marquei como gostei, tem um final apavorante e só tem maldade. Uma menina acredita estar seduzindo um rapaz que vende Bíblias pelos arredores e ao final ela é passada para trás, e o personagem masculino é de amargar. O famoso “quem vê cara, não vê coração.
“O Refugiado de Guerra”, o último conto dessa obra é bastante interessante. Um homem foge da Polônia, para trabalhar na fazenda de Mrs McIntyre e ele acaba sendo produtivo, mas do que os negros que são indolentes e roubam, mas são necessários. Há um casal Shortley onde o homem trabalha em seu ritmo, mais lento e a sua esposa cheia de opiniões acaba sendo a "amiga" da senhora, dona da fazenda. A questão aqui se repete, fala-se dos negros, da religião, da decadência das propriedades e do isolamento. E ao final, quase como em todos os contos, acontece uma tragédia, um fato inesperado. Não há grandes sobressaltos no conto, mas a escrita é tão fluida, que você vai lendo, e quando se dá conta, chegou ao final.
Foi ótimo conhecer essa grande escritora, que apesar de problemas de saúde e reclusão, produziu bastante.