Toni 10/06/2021
Leitura 35 de 2021
Dona Bárbara [1929]
Rómulo Gallegos (Venezuela, 1884-1969)
Pinard, 2020, 400 p.
Trad. André Aires
O primeiro lançamento da Pinard é um encanto: edição garbosa, tradução esmerada, curadoria exemplar, editoração e projeto gráfico de encher os olhos—tudo feito para cairmos de amores (e com razão) por esta novata no ramo. Considerado um dos livros fundamentais da literatura venezuelana e escrito por aquele que hoje nomeia o prêmio literário mais prestigioso do país, “Dona Bárbara” é um novelão na premissa e no desenvolvimento, mas um grande livro na forma e na fatura da obra. Como uma espécie de sertão rosiano, com sua própria mitologia, cultura, leis, superstições e tipos, o romance nos apresenta ao “llano”, à “llanura” e ao “llanero”: espaço, estado de espírito e habitantes de uma paisagem que não distingue galhardia e brutalidade, selvageria e sociedade, a firmeza da terra e a intangibilidade do horizonte.
Partindo de uma história de rivalidade entre duas famílias e do ódio cultivado como legislador da ordem llanera, o romance compõe um quadro complexo no qual diferentes perspectivas de mundo e vida se encontram nas figuras da temida Dona Bárbara, “cacique” de El Miedo, e Santos Luzardo, herdeiro retornado das terras de Altamira. Com a preocupação de uma prosa regionalista imersiva, Gallegos integra ao lirismo de suas descrições (muito bem traduzido à fina flor pelo querido André Aires) causos, canções e expressões do imaginário social e topográfico do llano, mas sem perder de vista o novelo narrativo puxado por inúmeras forças.
Longe de trabalhar soluções fáceis ou de maior apelo para um público criado à base de revelações bombásticas & plot-twists, o autor preenche suas páginas com a vastidão inebriante de rios e charcos, e a atmosfera úmida de um tempo à margem do tempo. Para a década em que foi escrito, o romance surpreende, ainda, pela construção da figura altiva, encantadora e envolta em mistérios de Dona Bárbara. Entre as suspeitas que rondam sua história e seu poder sobre El Miedo lembro mais uma vez do Grande Sertão. Aqui também, como lá, diabo não há — existe é homem humano. Travessia.