Pedro 04/05/2011
Equilíbrio: uma resignação macia em Preparação para a morte, de Manuel Bandeira
“Qualquer tempo que já passou pertence à morte.”
(Da economia do tempo – Sêneca)
Lúcida é a formulação essencial de Saussure: “o ponto de vista cria o objeto de estudo.”. Nesse sentido, um ensaio (pura metalinguagem) sobre um poema de Manuel Bandeira deve ser extremamente cuidadoso, pelo risco sempre presente de poder cair em arbitrariedades, uma vez que não se deve desprezar de modo algum a trajetória poética desse poeta tanto quanto sua biografia e sua fortuna crítica. Em tom de desespero, o ensaio é como um médico do alem tentando diagnosticar, acirradamente, um paciente que sofre muito de uma doença que não existe. Por isso, o meu enfoque neste trabalho segue a citação de Goethe em Pandora, a qual se utilizou Adorno antes de começar a enunciar suas considerações sobre a forma do ensaio: “Destinado a ver o iluminado, não a luz.”. Frase essa que, aliás, parece vir de encontro à poesia de Bandeira.
Segundo Octávio Paz, “a poesia é entrar no ser”. O mundo diante da “verdade” é inefável. A linguagem produz efeitos de sentido que tentam impor uma ordem no caos; e a poesia é o exemplo perfeito dessa ordem, porque na tentativa de dizer o indizível, o diz, criando um novo universo – de sentido. Assim sendo, quando o leitor estabelece contato com um poema, dá-se aquilo que Paz chama de “comunhão poética” – que nos faz reconhecer nós mesmos no “irreconhecível”.
Entretanto, há o grave problema da ideologia. Otto Maria Carpeaux ensina que “os homens não sabem ler”. E não sabem, porque lêem poesia carregados de preconceitos ideológicos que lhes são incutidos culturalmente por outras formas de expressão, como os jornais, as revistas, a televisão, a internet e qualquer outro tipo de mídia que esteja vinculado à “modernidade”, em que a manifestação lingüística privilegiada é a “informação”. As desordens que ocorrem, geralmente, nas interpretações dos poemas, são fruto da incompatibilidade de querer explicar um sentido por outros pré-estabelecidos, que lhe são completamente opostos.
“O que mudou,”, diz Carpeaux, “tornando-se mais artificial, não foi propriamente a poesia, mas o mundo: a intenção poética permanece invariável, mas a transformação do mundo impõe ao poeta outra atitude.”. E continua: “(...) a poesia contemporânea é interpretada pelos leitores como a poesia do século XIX (...)”. “‘A poesia moderna é incompreensível’ significa, na boca dos leitores: ‘não é como a poesia romântica, não tem, para nós outros, função pública’.”.
Digo isso para apresentar o poema:
“A vida é um milagre.
Cada flor,
Com sua forma, sua cor, seu aroma,
Cada flor é um milagre.
Cada pássaro,
Com sua plumagem, seu vôo, seu canto,
Cada pássaro é um milagre.
O espaço, infinito,
O espaço é um milagre.
O tempo, infinito,
O tempo é um milagre.
A memória é um milagre.
A consciência é um milagre.
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte.
– Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.”
(Preparação para a morte – Manuel Bandeira)
Uma primeira leitura equivocada desse poema, que poderia ser muito comum para um leitor leigo e desavisado da poética do poeta ou mesmo do estudo da literatura, seria ultra-romântica, concordando com o que afirma Carpeaux. Muito provavelmente, tal leitor poderia vir a dizer que se trata de um poema em que o eu lírico-poeta está em profunda crise existencial; louvando a delícia de viver ao expor todos esses sinônimos de vida e, até com um toque de indianismo, bucolicamente gozando do poder que é integrar esse universo milagroso, porém com a certeza de que a vida é efêmera e a morte, para seu total desespero, imanente e inconsolável; chegando até a ser irônico no último verso, como se dissesse: “– Bendita a morte! Que é o fim de todos os milagres...”, depois de uma voz que se enunciasse com euforia e rapidez, enfaticamente, em todos os outros exclamativos versos. Essa leitura estaria guiando-se pela idéia dominante do “desequilíbrio”, em que seria injusto que a balança caísse para o lado da morte com a desproporção evidente que há em relação ao peso do lado da vida.
Entretanto, para sucumbir essa tese, seria pertinente, primeiramente, atentar para os pontos finais; não há nenhum sinal de exclamação, apesar da contemplação explícita que os versos carregam. Além disso, o livro que abriga este poema é o último de Manuel Bandeira e em nada contradiz a poética que o poeta vinha adotando até então, com exceção do primeiro livro, “A Cinza das Horas”, em que, aliás, caberiam interpretações como a feita acima. Mas, o poeta, absolutamente, não mais faz versos como quem morre em “Estrela da Tarde”, apesar de que, na época em que terminou esse livro, a iniludível lhe estava mais próxima que nunca.
Medo de morrer todos nós o temos, no entanto, basta atentar para como o poema nos é apresentado no livro, para entendermos que o poeta está definitivamente seguro para se encontrar humildemente com a morte. Este último livro é dividido em seis partes; a sexta e última parte, que, aliás, chama-se “Preparação para a morte”, é onde se encontra o poema, que é o primeiro. Depois dele, há mais cinco poemas, entre eles Canção para a minha morte e Vontade de morrer, do qual transcrevo os últimos versos: “Sem ambições de amor ou de poder,/Nada peço nem quero e – entre nós –, ando/Com uma grande vontade de morrer.”.
Fica provado que é preciso ter uma coerência para entrar no universo de sentido do autor – diferente do universo físico e também do universo abstrato de cada um, que pré-estabelece as mais diversas ideologias. Ainda é importante ressaltar, dentro dessas considerações, que, além da propriedade que a poesia tem de nos revelar um sentido primitivo das palavras por algum motivo perdido em nossa sociedade, os signos bandeirianos adquiriram ao longo de sua linguagem significados muito próprios e propriedades bastante particulares que nos ajudarão na tentativa de desvendar a poesia em pauta. Comecemos uma análise possível.
Através do conceito que Jakobson expõe de “dominante”, pode ser sensato estabelecer a idéia do “equilíbrio” como central no poema. Primeiramente, essa leitura torna-se plausível se atentarmos para a semiótica presente no texto que pode nos ajudar a delimitar, de forma simples e abstrata, o conteúdo geral do poema. Pode-se, então, estabelecer-se a idéia do “desequilíbrio” como antagônica ao eixo fundamental que os versos pretendem (o “equilíbrio”).
Nesse sentido, é importante que nos concentremos com atenção, à primeira vista, no ritmo do poema. Pelo primeiro verso, nota-se que o tema da “vida” é relevante. Tal enunciação, “A vida é um milagre.”, utiliza-se do tempo “presente gnômico”; este tempo, de acordo com a Pragmática, ocorre quando o momento de referência é ilimitado e, portanto, também o é o momento do acontecimento – isso indica que, o momento de referência é um “sempre”, que está implícito; sendo assim, tal momento coincide com o momento do estado “é”. Portanto, essa frase, que se faz primeiro verso, é posta como sendo uma verdade absoluta, verdade essa que se assemelha muito com as proposições científicas que, pretensiosamente, acreditam afirmar exatamente a natureza das coisas: é como se o eu - lírico dissesse: “o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos.”.
Destarte, todos os outros versos seguem a proposição dessa primeira enunciação, com exceção dos dois últimos; desse modo, é evidente que o poeta quer propor uma lógica: se “a vida é um milagre”, então, “tudo é milagre”. De acordo com tal conteúdo, é interessante notar que o mesmo ocorre com a expressão: se, o ritmo poderoso e seguro do primeiro enunciado orna com o deste último, todos os outros versos, entre esses dois, são ritmicamente ordenados como notas musicais e coincididos como música: “cada flor” – “com sua forma, sua cor, seu aroma” – com “cada pássaro” – “com sua plumagem, seu vôo, seu canto”: “cada flor é um milagre” – “cada pássaro é um milagre”; “o espaço, infinito,” – “o espaço é um milagre”: “o tempo, infinito,” – “o tempo é um milagre”; “a memória é um milagre” = “a consciência é um milagre”. Entretanto, quando chegamos ao penúltimo verso, o tom muda; muda porque a palavra “tudo” é reiterada seguida de uma vírgula que já marca o traço adversativo, estigmatizado, logo depois, pelo signo “menos”. Deduz-se, dessa forma, uma dialética do poema: há uma tese que defende, do primeiro ao quarto verso, um pressuposto lógico guiado pela enunciação essencial “A vida é um milagre.”, que se contrapõe a uma antítese: “Tudo [é milagre], menos a morte.”; a síntese, por sua vez, pode ser exemplificada pelo último verso, que se coloca como a própria voz do poeta: “– Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.” – aqui, a cadência de ritmos que vinha se fazendo até então, se extingue, abruptamente, para dar lugar a um novo tom cortante e seco, entretanto, calmo e sereno; resignado em toda uma maciez que, apesar de afirmar a morte, nada tem de fúnebre; pelo contrário, eleva a existência há uma essência que, em toda a sua plenitude o “guardador de rebanhos” nunca pôde sentir, mesmo deitado ao comprido na erva.
Neste ponto, para entendermos com mais clareza o conteúdo do poema, vale reavivar a nossa noção da idéia dominante, o “equilíbrio”. Há um verso que se mostra essencial para entendermos a manifestação lírica do poema: “A consciência é um milagre.”. Talvez seja a consciência o nosso traço definitivo para se viver culturalmente, porque é só através dela que ordenamos sentidos – característica fundamental das sociedades, pois é a partir deles que conseguimos preservar a nossa espécie. Em outras palavras, o ser humano só consegue sobreviver, uma vez que é capaz de articular a linguagem duplamente, se encontrar um sentido para a vida. Esse sentido, entretanto, depende daquilo que é mais sagrado para nós e principalmente para um poeta: a memória. E isso fica exemplificado claramente em poemas de Bandeira como Infância e Evocação do Recife. “A memória é um milagre.”. Parece lúcido afirmar que, se não lembramos, não somos; nem como seres individuais distintos nem culturalmente em uma sociedade. Não é a toa que Homero, o mais antigo poeta épico ocidental de que se tem notícia, inicia a “Ilíada”, dizendo: “Canta-me, ó deusa, do Peleio Aquiles/A ira tenaz, que, lutuosa aos gregos,/Verdes no Orço lançou mil fortes almas,/Corpos de heróis a cães e abutres pasto:/Lei foi de Jove, em rixa ao discordarem/O de homens chefe e o Mírmidon divino.”. Sem sua consciência e sem sua memória, Manuel Bandeira não poderia, definitivamente, ter sido o poeta que foi, pois sua poesia nasce plenamente da experiência individual, em que pensar é lembrar:
“Quando hoje acordei, ainda fazia escuro
(Embora a manhã já estivesse avançada).
Chovia.
Chovia uma triste chuva de resignação
Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite.
Então me levantei,
Bebi o café que eu mesmo preparei,
Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando...
– Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.”
(Poema só para Jaime Ovalle – Manuel Bandeira)
Nesse sentido, Preparação para a morte parece demonstrar um balanço conclusivo da poética do autor; fazendo, assim, uma homenagem lírica à existência, existência que, no caso do poeta, serviu-se da Vida no seu sentido mais amplo, sem desperdiçá-la em um momento sequer, sugando todas as experiências que as milagrosas manifestações da matéria puderam lhe proporcionar à alma, como ilustram muito claramente poemas como Maçã. Diante desse ponto de vista, encontro a resignação macia que o poema oferece; posto que, a vida sem a morte seria um desequilíbrio puro e um total contra-senso. Afinal, ensina Nilton Bonder que a nossa alma é imoral, pois busca transgredir a natureza moral que o nosso corpo criou. Precisamos morrer, “Porque o homem de Neanderthal poderia ter morrido e desaparecido não fosse sua evolução, seu rompimento com a integridade de seu corpo para cumprir com destino que lhe deve ter sido profundamente penoso e ‘imoral’ – sua mutação e transformação. Só a alma transgressiva, só a traição evolucionária ao establishment do corpo e do corpo moral, resgata a verdadeira possibilidade de imortalidade.”.
“A vida é um milagre.”, e isso não é pouco. Primeiramente, porque a palavra “milagre”, colocada como sinônimo de vida, contradiz-se em alguns sentidos que nos são estigmatizados. Segundo o “Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa”, o significado de “milagre” é: 1. Feito ou ocorrência extraordinária, que não se explica pelas leis da natureza. (...) 5. Rel. Qualquer manifestação da presença ativa de Deus na história humana. 6. Sinal dessa presença, caracterizado sobretudo por uma alteração repentina e insólita dos determinismos naturais. Dessa forma, não há nada mais natural do que a vida, ainda mais com cada flor, com sua única forma, cor e aroma; cada pássaro, com sua única plumagem, seu único vôo e canto. Não há nada mais determinante do que o tempo e o espaço, pois são tão naturalmente infinitos; no entanto, são infinitos porque são milagrosos – tão eternos quanto Deus, tão sagrados quanto a fé que se depositou na “multiplicação dos peixes”. A partir disso, é simples perceber que o poeta está uma disjunção com os valores de vida e em conjunção com a morte. Novamente, o dicionário pode nos fornecer significado: bendito (...) 1. Diz-se daquele ou daquilo a quem se abençoou; abençoado: filhos benditos. 2. Bom, bondoso, benfazejo: criaturas benditas. 3. Feliz, ditoso; B e n d i t a a hora em que a vi! bênção (...) 2. Graça divina.
A morte, o anti-milagre, é para Bandeira, na verdade, mais um milagre, ou antes, o último dos milagres, porque é condição para a manutenção de todos os outros milagres – a vida: cada flor, cada pássaro...; o espaço, o tempo, as memórias, as consciências. Tudo. A vida, essa “agitação feroz e sem finalidade” ganhou uma prece. “(...) pode a noite descer./(A noite com os seus sortilégios.)/Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,/A mesa posta,/Com cada coisa em seu lugar.”.