edu basílio 28/01/2024sobre temperança
há uma virtude que aristóteles, e depois thomás de aquino, começaram a difundir já há muitos séculos, e que foi mais recentemente delineada e aprofundada por immanuel kant
(filósofo que tanto admiro, até por ser um dos únicos cujo pensamento eu consigo entender um pouquinho): essa virtude é a
temperança.
em termos bem simples, a temperança se refere aos nossos esforços na busca por moderação e racionalidade em nossos hábitos, posturas e expectativas. uma consequência natural do cultivo da temperança seria um viver sereno em todas as esferas, o que eu acredito ser uma forma muito pura -- e por isso mesmo tão valiosa -- de felicidade.
tendo concluído a leitura há algumas horas, percebo que minha experiência com "crônica da casa assassinada" foi toda marcada, do começo ao fim, por um vácuo de temperança: de vários leitores que o comentaram, de mim mesmo e do próprio autor.
os comentários de leitores a que tive acesso são quase todos ou de amor ou de ódio categóricos, pretos ou brancos, sem tons de cinza. "é um clássico absoluto da literatura moderna brasileira, injustamente ignorado e relegado à obscuridade", alguns bradam. "é uma grande lenga-lenga, monótona e repetitiva, que sai do nada e leva a coisa alguma", sentenciam outros. penso que a falta de temperança dos dois times está evidente.
já a minha falta de temperança consistiu em uma extrapolação nada inteligente que fiz: no passado, quase todas as obras que suscitaram esse tipo de racha no público amplo acabaram por me encantar muito. para ficar só em dois exemplos, foi assim com o filme "beleza americana", foi assim com o livro "lincoln no limbo". logo, sendo objeto de um racha tão vívido de reações e opiniões, esse livro só poderia me encantar
(um sofisma que bestamente tomei por silogismo). não encantou. é certo que não me causou desencanto total, mas não me encantou -- e é irônico que justamente aqui pareça haver um tênue traço de temperança.
ainda, ouso atribuir o balde de água fria, em parte, ao que vejo como falta de temperança do autor
(ciente de que é uma percepção minha, "do edu", e que é normal, está tudo bem, se você ou você ou você tiver uma percepção diferente). penso assim porque os maiores incômodos que a obra me causou nascem surpreendentemente de grandes qualidades dela: ao serem manejadas com pouca temperança, essas qualidades perderam muito de seu poder de encanto -- como um doce de leite com excesso de açúcar, "destemperado", que acaba por fazer arder os olhos e provocar náuseas.
e acho que é aqui que vale aprofundar um pouco.
para um livro publicado em 1959, "crônica..." tem o mérito de ser disruptivo.
- é disruptivo em temática, pois já em sua abertura, o romance confronta o leitor ao incesto e à pedofilia, algo que nos pesará sem trégua até perto do final. a transexualidade tratada como se fosse aberração, o adultério como escape para arranjos sociais e familiares sem afeto, a sensorialidade repugnante ao retratar a dizimação lenta de um corpo doente de câncer... eis apenas três dos outros aspectos trazidos às páginas de maneira frontal, crua, com intensa carga expressiva. de posse desses itens do menu, não é difícil sacar que o romance tem uma atmosfera pesada, opressiva, escandalosa, ainda pior para toda a "gente de bem" do brasil de há 65 anos. seria uma tremenda injustiça não saudar esse mérito.
- é disruptivo também em forma, porque não há narrador nem onisciente e nem único: tudo o que chega ao leitor vem por meio de cartas trocadas entre várias personagens, trechos de diários de uns, confissões de outros, depoimentos de outros ainda, o todo com algum (leve, bem-vindo) zigue-zague temporal. particularmente, eu adoro esses experimentalismos de forma em romances. eu já mencionara "lincoln no limbo", e lembro-me agora também de "garota, mulher, outras" e "seu projeto sangrento", dois outros exemplos que, cada um ao seu modo, demonstraram lindamente possibilidades diferenciadas de COMO narrar. não digo que não existam outros, mas eu ainda não tinha lido um romance brasileiro que ousasse nesse aspecto.
e então vêm os destemperos correspondentes:
- entendo que seja legítimo mostrar uma mesma cena ou um mesmo ocorrido de diferentes pontos de vista (ainda mais considerando a estrutura narrativa plurivocal). mesmo assim, para o meu gosto, as repetições ultrapassaram o limite do agradável e até do útil. se a intenção de tanta repetição de lamúrias era enfatizar a atmosfera deprimente dentro da chácara dos meneses, ela se excedeu muito e acabou por tornar deprimente a minha experiência de leitura.
- e isso nem é o pior ao meu ver, porque há outro aspecto, de forma desta vez, que atenta severamente contra a credibilidade da obra: TODOS os narradores -- um farmacêutico, um padre, um coronel, um médico, uma governanta e diferentes mulheres e homens da família meneses (incluindo um jovem de 16 anos) -- se exprimem em um português homogêneo, de mesmíssimo nível: um nível culto, muito culto, cheio de mesóclises, com um vocabulário de fazer empalidecer camões, josé de alencar, saramago e os ministros mais histriônicos do STF em seus discursos. é definitivamente inverossímil que todas essas pessoas tenham a mesma bagagem intelectual e de vida para se exprimir exatamente da mesma forma, solene e erudita, até a última linha.
o desfecho do romance traz um interessante redesenho dos fatos que, sem redimir ninguém, reposiciona muita gente em cima do tabuleiro das responsabilidades, culpas e remorsos. esse é outro ponto positivo, que de alguma forma atenuou um pouco os incômodos todos que experienciei na leitura.
não menciono quase nada aqui sobre a trama em si, e nem mesmo sobre as personagens, porque não estou escrevendo uma sinopse (há excelentes sinopses na orelha, na contracapa e nos sites de livros). além disso, e certamente mais importante, eu desejo que quem vier a me ler chegue a este ponto sem encontrar spoilers.
creio que a mensagem maior que eu desejava exprimir está clara:
acho que "crônica da casa assassinada" tem algum mérito sim, mas de forma alguma justifica um altar com velas, incensos e um culto de adoradores. julgo importante enfatizar isso, pois vivemos um momento histórico em que o extremismo nos julgamentos e opiniões tem trazido consequências muito graves para nossas vidas aqui fora, para além dos livros.
que a lição sobre temperança com que saio dessa leitura perdure em minha vida :-)
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