Naiana 05/12/2022
Tradução dos costumes e vida de uma época
Com quase 700 anos que foi escrito, O Decamerão é o livro mais antigo que já li, retrata um período histórico bem específico e marcante, o final da Idade Média com os surtos da epidemia de peste e a grande mortalidade europeia. Iniciei essa leitura acreditando que o livro iria tratar exatamente deste período e me surpreendi ao ver que não era exatamente assim.
O Decamerão inicia dando um breve relato em como a peste assolou a Europa e mais especificamente a cidade de Florença, onde a narrativa se passa, e através dessa ambientação somos apresentados a um grupo de sete jovens moças (Pampineia, Fiammetta, Filomena, Emília, Laurinha, Neifile e Elisa) que estavam agrupadas na igreja de Santa Maria Novella e em meio a discussão sobre vida e morte resolvem sair da cidade para gozar um pouco da vida que ainda lhes cabe e tentar esquecer as angustias que aquele cenário de mortes constante as envolve. Encontrando três jovens rapazes (Pânfilo, Filóstrato e Dioneio), enamorados de umas e parentes de outras, decidem ir para um pequeno vilarejo próximo a cidade de Florença, onde ocupam um castelo com seus servos e ali passam 15 dias a se deliciar com os prazeres do campo. Ao primeiro dia decidem nomear uma rainha ou rei que irá governar a cada dia, definindo como iriam passar o dia, em meio a passeio, jogos e piqueniques, e ordenando aos servos como proceder, com apenas uma constante a cada dia, após a sesta iriam se reunir para contar pequenas novelas a respeito de um tema escolhido pela rainha ou rei na véspera, findando o dia com a escolha do novo reinado, com muita música, cantoria e danças. Desta forma somos introduzidos a novelas sobre o amor, tragédias, comédias, críticas sociais e ao clero, burlas e atos de magnificência, entre outros, mas sempre demostrando o quanto aquele grupo de atém as normas sociais de conduta e honra, apesar dos personagens de suas novelas não obedecerem a mesma ordem em sua maior parte.
Ao todo temos 10 jornadas condizentes aos reinados de cada um dos jovens do grupo e a um dia, sendo os outros 5 dias referentes aos dias santos e de cuidados das mulheres, onde não há um soberano reinando. A cada jornada são narradas 10 novelas e ao todo somos presenteados com 100 narrativas de cunho histórico, baseado em fatos ou anedotas da época.
Não é um livro para ser lido às pressas, ele retrata a sociedade e costumes de uma época, seja pela forma como os jovens se comportam e conduzem o seu isolamento em meio a epidemia que os assola, quanto através de suas narrativas, nas críticas a um clero corrompido e cheio de lascívia, ao retrato familiar onde a traição é comum e o engodo é comum, às burlas cometidas entre casais, amigos e conhecidos, atitudes de honra, cavalheirismo, entre tantos outros. Nem todas as novelas são fáceis de ser lidas, algumas a violência domestica é tratada como algo banal e comum, direito do esposo e defendido pelas jovens ali presentes. Estupro e atentado a inocência também são retratados como coisas cotidianas e para conseguir ir até o fim precisei lembrar sempre que se tratava de um livro escrito há 700 anos, onde existe muitas semelhanças com a nossa sociedade, principalmente em relação a narrativa inicial sobre como a peste assolou a Europa e o comportamento da população em relação a isso (as semelhanças chegam a ser absurdas quando lembramos quanto tempo se passou entre as duas calamidades), mas também ao comportamento da família tradicional e conservadora, assim como diferenças gigantescas relacionadas a sociedade, as ideias e ideologias vigentes em cada época. Não que não ocorra mais violência doméstica, estupro, machismo (seria ótimo que não ocorressem mais), mas isso não é mais tolerado nem aceito como antes, ainda bem.
Avaliando o livro por este lado, onde vemos um retrato de uma época, de uma sociedade, é um livro excelente, muito bem escrito, de fácil entendimento (claro que a tradução colabora muito para isso) e que não é difícil observar que ainda persistem certos hábitos e costumes. Me diverti bastante com algumas novelas, odiei outras e gostei muito de que a cada nova novela há um pequeno resumo do que será abordado, isso nos prepara para que tipo de texto iremos ler.
Sobre a edição: li a edição de luxo da Nova Fronteira de 2018 em capa dura. A edição em si é belíssima, tanto o box, quanto os dois volumes, uma boa diagramação, tamanho da letra e papel confortáveis a leitura, senti falta do fitilho, mas dá para passar sem ele. As notas sobre os personagens históricos ou baseados neles ficam ao rodapé, que para mim facilita muito a leitura, mas a edição deixou a desejar na revisão, há alguns erros de tradução, grafia, concordância, e alguns destes chegam a ser grotesco como dividir a palavra consequência na quebra de linha em “conseq- ência” e esquecer de colocar a primeira letra do nome do personagem. Pode ser parecer bobagem, mas para uma edição de luxo e uma editora de renome como a Nova Fronteira são grandes erros e me incomodaram a ponto de querer desistir de ler.
Enfim, não amei pelas questões de divergências de opinião de época, mas não me arrependo de ter lido, me trouxe um conhecimento maior de como era a sociedade no final da Idade Média, seus hábitos, costumes, as mudanças na nobreza com casamentos por dinheiro com membros da burguesia emergente. Ter um aprofundamento do que aprendemos nos livros de História, que deixou de se algo que imaginava através de pontos citados, e passei a ver através de uma leitura que demonstra como esses pontos de fato ocorriam.
Se tem interesse em clássico e em narrativas que traduzem o comportamento e vida de uma época da História, vale ser lido.