Alberto 26/12/2021Viajando pelo mundo feroz guiado por uma católica do Sul dos EUA.O'Connor é uma virtuose da arte do conto. Suas estórias são sempre um pouco espantosas e dão aquela sensação de impacto que se espera de um bom conto. E o talento dela aparece justamente porque essa sensação de choque surge mais fortemente nos contos onde o enredo não traz grandes cenas ou reviravoltas: o movimento interno das emoções e sensações dos personagens é que causa as impressões no leitor. A autora circula incessantemente em redor dos mesmos temas: o mundo hostil, o homem lobo do homem, a solidão, a nostalgia de um paraíso perdido ou de um mundo que não existe mais, o perigo iminente do desastre escondido nas circunstâncias mais triviais do cotidiano, a constante iminência de alguma experiência religiosa-transfiguradora-iluminadora. O mesmo argumento é desenvolvido muitas vezes, como no caso da viúva fazendeira com empregados e filhos problemáticos: vários contos partem do mesmo argumento e usam os mesmos personagens para desenvolver estórias totalmente diferentes na aparência, mas fundamentalmente iguais na essência. O estilo é riquíssimo, não há palavras nem imagens supérfluas, tudo é calculado e tem sua função no texto. O simbolismo é abundante. Os personagens são profundos e consistentes. Cada móvel ou peça de cenário tem uma utilidade para o andamento da narração, O'Connor é perita na regra de outro do "show, don't tell". Os contos mais antigos são mais crus e violentos no sentido literal, mais comprometidos em entregar algumas emoções fortes nascidas das cenas propriamente, e por isso podem agradar aos leitores menos experientes. Os contos da fase madura são mais atmosféricos, a violência é mais insinuada ou mais psicológica, menos física, mas o mal-estar produzido no leitor mais experiente é mais impressionante. Não é livro para ler correndo. Não é para quem busca uma leitura consoladora, otimista ou simpática ao ser humano de modo geral. O posfácio de Cristóvão Tezza é ótimo, e está no final justamente porque é melhor ler os contos sem spoiler, para degustar a surpresa sem influência externa.
Levei dois anos lendo aos pouquinhos essa coleção e é difícil fazer um resenha curta.
Contos curtos que transportam para uma atmosfera de um oriente real, pobre e sofredor, e permitem um vislumbre dos modos de existir e pensar da sua gente. A edição da Carambaia é uma pequena joia, livro tão bom de olhar quanto de ler. Indicado para amantes de contos, interessados pelo islamismo ou em geral por conhecer outras culturas. Não indicado para o leitor médio de bestsellers.
Remeto o leitor à minha resenha de "Os Sertões". Este livro é uma espécie de anexo da obra maior de Euclides, e só interessa aos fãs dele e aos leitores e estudiosos d'Os Sertões. Como leitura independente é uma chatice: uma coleção de anotações de um diário de campo escrito quando não estava acontecendo nada de muito interessante. Alguns dos textos são claramente rascunhos de passagens que se lê n'Os Sertões em forma aprimorada. Para quem leu "Os Sertões" e quer saber mais sobre os fatos, o autor ou a história do livro, este "Diário" é precioso. Permite perceber a evolução do pensamento/sentimento do autor. O Euclides que escreveu o Diário não parece a mesma pessoa que escreveu "Os Sertões", e perceber a metamorfose que a experiência causou no escritor ajuda a por em contexto a história de Canudos.
Novelinha gostosa de ler, divertida e irônica, de estilo surreal/fantástico com intenção moralizante. Fala de uma sociedade superficial e acusa a sua futilidade pelo caminho da fantasia humorística. Linguagem acessível, enredo fácil de entender, escrita sofisticada, sem lugares comuns e com personagens bem desenhados, hilários e consistentes. A edição da Antofagica é muito bonita e as ilustrações são boas. Os paratextos são bastante instrutivos. Livro indicável para qualquer leitor de mente aberta, inclusive para quem quer dar os primeiros passos fora do circuito dos bestsellers e trilogias da moda para adolescentes.
Três contos curtos, gostosos de ler. Linguagem acessível, enredos bem definidos mas com escrita sofisticada, sem lugares comuns, sem chavões ou truques baratos. Boas imagens e personagens bem desenhados, alguns lances de humor, poesia e descrições irônicas da natureza humana. Indicado para quem quer começar a ler contos: os de Fitzgerald têm começo, meio e fim, coisa que geralmente não se vê nos contos mais contemporâneos e que incomoda os iniciantes no gênero. A edição da Antofagica é muito bonita e as ilustrações são boas.
É o primeiro livro de Clarice, e quem leu os seus trabalhos maduros percebe ali as sementes dos temas que ela abordaria repetidamente até o fim: a existência, o ser, o tempo, o real e a (im)possibilidade de conhecê-lo. Não é de jeito nenhum um romance convencional, e não é indicado para o leitor médio. É um longo fluxo de consciência, intrincado e cheio de nuances psicológicas. É também o livro mais "expositivo" que eu li da autora, em certos trechos ela usa as personagens para discorrer sobre algumas ideias filosóficas (de Spinoza, principalmente, me parece; mas não sei o bastante para afirmar) que são interessantes para quem gosta disso. A edição comemorativa é uma maravilha em termos de qualidade editorial.
É uma poesia muito peculiar, pessimista, metafísica, que abusa de termos científicos e filosóficos, e reitera muitas vezes os mesmos e poucos temas: a morte, a futilidade/efemeridade da existência, a insignificância humana, a falta de sentido da existência etc. Não há lugar para romance nem amor, feliz ou frustrado, no trabalho de Augusto. Saudade, sim, mas só da infância, da família e do ambiente natal. Enfim, é poesia deliciosa, bem escrita, inspirada, tecnicamente perfeita e original do estilo e nas imagens, mas é para quem aprecia o gênero e os temas. O versão que li, com todos os poemas, é interessante porque, primeiro, mostra alguns "lados B", trabalhos menores, alguns até incompletos, que permitem ver o processo de trabalho e a evolução do pensamento e da técnica do autor. Segundo, mostra, nos primeiros trabalhos da juventude, um lado jocoso, espirituoso, que é desconhecido de quem só lê os trabalhos maduros ou famosos do autor.
Este talvez seja o "grande livro" de Clarice, no sentido de ser uma obra que tentou resumir seu pensamento (ou talvez fosse melhor dizer: seu sentimento). Não cabe em nenhuma classificação usual: não é romance, nem diário, nem epístola, nem dissertação, e talvez seja um pouco de tudo isso. É um tipo de longa crônica, muito pessoal e espontânea, onde a autora compartilha seus insights sobre seus temas recorrentes de investigação: a existência, o ser, o real e a possibilidade de seu conhecimento. Para mim pelo menos parece um trabalho altamente filosófico, versando sobre metafísica e epistemologia, embora não seja uma exposição e sim uma coleção de lampejos e intuições sobre o tema. Li alguns livros dela já, e os mesmos temas aparecem em todos, expostos de maneiras diferentes, e para mim a qualidade maior de Clarice é que ela não é uma "respondedora", mas uma "perguntadora", que divide com o leitor suas dúvidas e a incapacidade de solvê-las. A edição comemorativa da Rocco, com os datiloscritos e bons paratextos com a história do livro, é um primor. Defeitos: não é de modo nenhum indicado para o leitor médio, é um livro para fãs ou para interessados em questões metafísicas/filosóficas/existenciais; os paratextos e datiloscritos dessa edição só interessam aos fãs de carteirinha de Clarice, para os demais é possível gastar muito menos por uma edição perfeitamente boa e sem esses acessórios.
O texto é fluido, fácil de ler, para quem tem uma pequena noção sobre filosofia. A escrita de Durant é deliciosa, cheia de personalidade, recheada de tiradas poéticas e irônicas, algumas hilárias. Dá para ler por diversão, pode-se dizer. O autor escolheu falar apenas dos autores que ama, e não o faz imparcialmente, nem finge fazê-lo. São suprimidos todos os autores "chatos", a filosofia medieval/escolástica não existe nessa obra. Os resumos bibliográficos enfatizam o valor humano dos autores resenhados, e são por vezes muito tocantes (no caso de Spinoza, por exemplo). É difícil, muitas vezes, separar no texto o que é ideia do filósofo resenhado e quais ideias são do próprio Durant: ele "se mete" um pouco. De todo modo, é livro precioso para quem tem outras fontes para comparar, a fim de dar às ideias ali expostas algum contraste e um julgamento mais instruído. Defeitos do livro: não acho que seja recomendado para iniciantes sem alguma leitura prévia; e foi escrito há cem anos, deixando de fora, obviamente, um grande conjunto de informações sobre o que veio depois.
Dá para ler em hora e meia, o texto é leve, o recado é otimista, de fé nas possibilidades de redenção do homem. Um resumo das ideias que Dostoiévski parece desenvolver em outras obras com muito mais dispêndio de tinta: o homem é um caído, desgraçado por sua própria culpa, mas é capaz de se reerguer e reconstruir para si um paraíso a partir da razão e da solidariedae. E quem crê nisso é ridículo, segundo Dostoiévski, mas deve se orgulhar e perseverar na "loucura do bem". Fácil de ler, envolvente, recheado de belas frases morais. A edição Antofagica é linda e as ilustrações coerentes com o tema e belas. Os paratextos são bem bons também.
Não é indicado para iniciantes nem para quem aprecia bestsellers de leitura fluida, narração cronológica e enredo clássico bem definido, com começo, meio e fim. Aqui o autor oferece uma coleção de fragmentos de cena, retratos humanos e episódios, geralmente tristes, angustiantes e/ou violentos, que apresentam a cidade grande como um ambiente hostil habitado por gente aflita. Dá para contar nos dedos de uma mão as passagens neutras ou minimamente otimistas.São contos e mini-contos sem outra correlação entre eles que não seja o ambiente, a metrópole brasileira contemporânea e seus personagens angustiados. Bem escrito, imaginativo no uso dos recursos narrativos. Leitura que exige atenção e alguma experiência para decifrar o mix de ferramentas estilísticas que Ruffato usa como pinceladas para compor seu painel do espírito de uma época. Livro valioso, cumprindo aquele papel que Sartre atribuía à arte, que seria o de gerar no seu fruidor uma consciência infeliz. A edição BestBolso é "fraquinha" em termos de qualidade de impressão, papel e encadernação.
Está presente nesse livro a sensação de estar imerso num pesadelo desconfortável, que é característica das obras de Kafka. Neste livro a violência e a brutalidade são mais expressas, menos insinuadas que em "O Processo" e "A metamorfose". É um texto simbólico, trata dos poderes e malefícios do totalitarismo, e alguns viram nele uma antevisão da chegada do fascismo. Tirei dali umas boas frases memoráveis. A ideia da transfiguração, da iluminação pela dor, permeia o texto. É curto, fácil de ler, embora o tema seja pesado e a violência incomode. A edição que li, da Antofagica, é belíssima e as ilustrações de Lourenço Mutarelli são elas mesmas uma obra prima à parte.