Henrique Fendrich 24/09/2019
Relato jornalístico de um náufrago
Não fosse a fama que o escritor Gabriel García Márquez já alcançava no final dos anos 60, provavelmente o incrível relato do náufrago Luis Alejandro Velasco teria ficado esquecido nas páginas do El Espectador, de Bogotá, onde originalmente foi publicado em 1955, ou restrito a republicações dentro da Colômbia. Mas àquela altura, três anos depois do lançamento de “Cem anos de solidão”, pareceu conveniente aos editores de García Márquez associar pela primeira vez a história ao jornalista que a escreveu, e não ao personagem que havia passado dez dias dentro de uma balsa. Assim é que “Relato de um náufrago”, narrado em primeira pessoa por Velasco, passou a fazer parte da biografia de García Márquez e a ser considerado por alguns o seu primeiro romance, ainda que não-ficcional.
A despeito da depressão que o escritor disse sentir ao perceber que, aos editores, o mérito do texto não era tão importante como o nome que o assinava, é preciso reconhecer os seus méritos na reconstrução da fantástica história que lhe caiu no colo. É bastante comum pessoas alegarem que as histórias de suas vidas dariam um livro, mas apenas o trabalho minucioso de um escritor de qualidade garantirá que ele seja bem sucedido. O relato de Velasco encontrou não apenas um escritor, mas um jornalista à altura do seu valor. Os métodos utilizados neste processo são dignos de uma melhor observação.
De início, a história do naufrágio pareceu pouco atraente aos jornalistas do El Espectador, pois já havia sido bastante explorada pelos jornais governistas da época. Mas uma das lições possíveis deste relato é justamente a de que nem sempre aquilo que os jornais noticiam é a verdade, pois forças externas atuam para que a versão publicada coincida com os seus interesses. Até Velasco oferecer a sua história ao jornal em que García Márquez trabalhava, prevalecia sobre o episódio a versão que o governo colombiano havia transmitido e usado em seu favor, independente daquilo que o próprio náufrago tivesse a declarar. Ao aceitar ouvir o relato do único sobrevivente e reconstruir em detalhes a sua história, García Márquez descobriu uma versão diferente para o naufrágio, e que teria implicações políticas.
Segundo a versão oficial, oito tripulantes do destróier Caldas haviam caído no mar do Caribe após uma tormenta. Velasco, no entanto, confessou que não havia tido nenhuma tormenta, aconteceu apenas que a carga de contrabando trazida pela embarcação se soltou e arrastou para o mar oito marinheiros. Como apenas a declaração do náufrago não seria suficiente para contestar a versão do governo, o jornalista García Márquez precisou então consultar os serviços de meteorologia locais, os quais confirmaram que o naufrágio havia acontecido em uma das épocas mais mansas nas águas do Caribe. Quando a nova versão chegou às páginas do jornal, o governo divulgou uma nota desmentindo que o destróier levava contrabando. Foi preciso que os jornalistas pedissem a Velasco uma lista dos tripulantes que tinham máquinas fotográficas e, depois do esforço para encontrá-los, conseguiu-se então algumas fotos em que era possível enxergar claramente a mercadoria contrabandeada. A partir daí começaram represálias ao jornal, o que inclusive resultaria no seu fechamento meses depois.
Embora García Márquez ressalte o excepcional instinto de narrar e a assombrosa capacidade de síntese e memória de Velasco, parece ter sido grande a sua habilidade em arrancar do náufrago as informações que precisava, detectando suas possíveis contradições, e em organizar esse material para que aqueles dez dias fossem reconstruídos de forma detalhada e atraente ao leitor. Para isso fez o que chamou de “rastrear esgotante”, com 20 sessões diárias de seis horas. E a reconstrução parece tão completa durante a leitura que pode-se imaginar o trabalho no levantamento das informações. Espantemo-nos, portanto, com o relato, impressionemo-nos com aquilo que Velasco suportou, ressaltemos as qualidades literárias de seu escritor, mas não deixemos de engrandecer também o trabalho jornalístico que permitiu que essa história viesse à tona.