Higor 30/01/2024
"LENDO PULITZER": sobre como algumas estrelas resplandecem, independente de traduções e revisões questionáveis
Não se sabe exatamente o motivo deste "Blonde", maior calhamaço de Joyce Carol Oates, ser dividido em duas partes, quando livros com mais que as 810 páginas aqui presentes são publicados em volume único, mas eu agradeci aos céus pela divisão, pois só assim eu conseguiria encarar uma história tão pesada sem abandoná-la - com espaço de tempo de exatos um ano e dois meses entre as partes.
A parte final da saga de Marilyn Monroe, nascida Norma Jean, uma mulher com uma vida sempre difícil, desde a infância em orfanatos e adoções temporárias na adolescência, passando por um casamento frustrado com um cidadão americano qualquer, passando a trabalhar no mundo midiático, do entretenimento, não sem uma dose cavalar de humilhação e dificuldade, começa no melhor momento da atriz: ela conseguira, enfim, chegar ao auge da carreira, assim como engravidar.
É do conhecimento geral que a mãe de Monroe era uma mulher com problemas mentais, passando boa parte da vida em hospitais psiquiátricos, em que a filha sempre a visitava; logo, Norma Jean sonhava em ser mãe, talvez para externar ao bebê o amor que sentia pela mãe (e não era retribuído), ou ainda para tentar ser uma mãe melhor que a que teve. O pai não importava, afinal, o relacionamento conturbado entre o trisal Monroe-Chaplin-Robinson bastava para executar seu sonho.
Muitos foram os abortos que Marilyn Monroe teve, embora há controvérsias quanto aos espontâneos e aos intencionais, devido, principalmente, à conhecida pressão dos estúdios para que a atriz produzisse mais, tendo em vista que o que ela fizesse estourava instantaneamente. O próximo filme que estava previsto para Monroe fazer era o icônico "Os homens preferem as loiras", que, como se sabe, bateu recordes de bilheteria, mesmo a atriz ganhando um salário muito menor que o esperado para uma estrela de seu porte.
Os problemas e polêmicas que envolveram toda a vida de Marilyn Monroe não pararam por aí, mas não dá pra especificar todos eles nesta resenha por dois motivos, principalmente: o primeiro é que o objetivo de Joyce Carol Oates não é o de fazer deste livro um exemplar de fofoca barata, e sim um retrato cruel, tanta da era de ouro do cinema americano, quando dos problemas que acontecem nos bastidores do entretenimento, quando o glamour e as festas não são vistos. Prova disso é que a autora, em diversos momentos, tira Monroe de cena e apresenta tantas outras atrizes, todas usadas e abusadas à exaustão por Hollywood, quando não tinham o respeito, salários dignos e muito menos vozes em meio ao poder masculino.
E é justamente por isso que o livro está em um nível acima de tantos outros livros sobre o assunto ou a estrela, pois quando focando em Marilyn Monroe, apresenta uma mulher vítima de uma indústria feroz, e as consequências de uma vida inteira de luta, sofrimento e decepções enquanto tentava viver o american way of life, o sonho americano que todos desejam. Nesses momentos, Oates não alivia o leitor, tanto que aproveita e se apossa dos mais variados recursos para ilustrar uma mente fragmentada, machucada, dopada, que vai se deplorando a cada nova dose de espumante, a cada novo não, a cada novo estupro, a cada nova situação em que a vulnerabiliza.
Assim como quando o foco não é Monroe, Oates consegue ilustrar tão bem os Estados Unidos, Hollywood e Broadway da época, com os mesmos recursos e sua nata genialidade, que é impossível o leitor, mesmo sofrendo, pois o livro é bastante sofrido, não quer parar de ler e ver como tudo vai acabar, mesmo sabendo do final trágico.
Não é à toa que a autora é figura constante nos principais prêmios literários nacionais e internacionais, tanto que é volta e meia cogitada ao Nobel de Literatura, pois são poucos os escritores que conseguem descrever um cenário de maneira tão brilhante apenas na conversa de duas pessoas, sem sequer detalhá-lo em nenhum momento, ou mostrar a angústia, desespero, sofrimento e tensão de um personagem apenas narrando justamente o cenário, quem está acompanhando o personagem principal de perto.
Grandes momentos, como a inesquecível cena em "O pecado mora ao lado", em que o vestido branco de Marilyn é levantado na rua pelo jato do respiradouro do metrô na calçada, foram construídas assim, evitando a monotonia e o marasmo, mas buscando a curiosidade e o prazer em virar tais páginas. Por elas, essas cenas, que o sofrimento como um todo vale a leitura.
Infelizmente, preciso falar que, embora entenda a ideia de Oates, é um tanto frustrante não encontrar um alívio sequer, seja cômico ou psicológico. Nem quando Monroe está grávida de Miller, e deixa de tomar remédios para aproveitar ao máximo sua gravidez, talvez o momento mais feliz de sua vida, há um descanso para a tensão e o sofrimento. Muito triste ver esse panorama de Marilyn, apenas banhada em dor e sofrimento, quando sabemos que ela foi mais que isso, uma mulher que batia de frente com os donos dos estúdios, reivindicando melhorias, ou risonha, detendo até hoje o título de melhor filme de comédia de todos os tempos, por "Quanto mais quente melhor".
Vale lembrar que: vendido como um romance, uma espécie de biografia fictícia, "Blonde" é entendido pela própria autora como uma história condensada em diversos momentos, assim como alongada em tantos outros, tudo em nome da boa literatura, ao lidar com situações controversas e que não há o mínimo de fonte biográfica para sustentar, mas que claramente reforça pontos estratégicos para a construção do enredo.
O grande problema de "Blonde", infelizmente, mantém-se presente neste segundo volume, como era de se esperar. A tradução e sua inexistente revisão são de cair o queixo, com palavras engolidas, outras escritas de maneira errada ou repetida, fora tantos outros erros que questionam o tratamento dado ao livro e mais uma vez evidenciam a total falta de revisão, mesmo com uma pessoa designada para tal função.
Doloroso, real e sufocante, "Blonde" não mascara nenhuma das facetas de Hollywood e do mundo do entretenimento como um todo, mesmo que muitos queiram ignorá-la. Apesar de sua força, poder e influência, Marilyn Monroe sucumbiu em um cenário que volta e meia sacrifica seus próprios súditos.
Este livro faz parte do projeto "Lendo Pulitzer".