Renan Barcelos 07/06/2012
Um romance histórico de um passado que nunca existiu
Willian Gibson e Bruce Sterling são conhecidos principalmente pelo mérito de definir o que seria o cyberpunk na literatura, com trabalhos como Neuromancer e a antologia Mirrorshades, no entanto, A Máquina Diferencial(Editora Aleph;2012; R$ 55,00; 456) não leva o leitor até um futuro distópico. O livro, escrito simultaneamente pelos dois autores durante o período de sete anos, trás à tona uma era vitoriana onde vapor e computadores fazem parte do cotidiano. Além de serem os precursores do cyberpunk, os dois autores acabaram escrevendo uma das maiores referências do Steampunk.
No universo de A Máquina Diferencial, a ciência evoluiu de forma muito mais acelerada que a versão histórica da era Vitoriana. Conseguindo finalizar o projeto nomeia o livro, o matemático Charles Babbage acaba trazendo uma série de mudanças não só para a ciência como para o mundo.
Adquirindo cada vez mais influencia devido às conseqüências da revolução industrial e da Máquina e conseguindo frustrar o golpe de estado realizado pelo Duque de Wellington, Lorde Byron e o Partido Radical – os rads – conseguem chegar ao poder. Logo a influencia da Inglaterra começa a aumentar, os portos do Japão são abertos pelos ingleses e os estados unidos se dividem e enfraquecem antes mesmo de haver uma guerra de secessão. A velha aristocracia inglesa perde seus direitos hereditários e uma meritocracia científica, sob o olhar do primeiro ministro, Byron, domina o panorama político.
Com o tempo, carruagens a vapor trafegam por Londres, inúmeras máquinas são automatizadas por programação usando cartões perfurados, cinétropos – cinemas feitos com a tecnologia da Máquina – atingem a grande população e uma vasta rede de quilômetros de engrenagem processa as informações da maioria das agencias inglesas.
Em meio à isso, Sybil Gerard, uma prostituta, filha de um finado líder ludita, se vê em meio à politicagens que envolvem Sam Houston, Presidente da República do Texas que fora deportado. Edward Mallory, paleontólogo que descobriu o Brontossauro enquanto lutava com índios e texanos, vê sua carreia em ascensão ser ameaçada por um criminoso. E Oliphant, um jornalista, diplomata e espião, tenta juntar as peças que consegue encontrar. Histórias que à primeira vista parecem desconexas, mas onde uma série de curiosos cartões de clacking – ferramentas usadas para programação da Máquina –, um bandido texano e a própria Rainha das Máquinas, Ada Byron parecem sempre estar envolvidos em uma conspiração que ameaça todo o Partido Radical.
O livro tem uma história cativante, que prende a atenção do leitor e mais do que cumpre seu papel. No entanto, esta longe de ser um dos únicos atrativos. A Era Vitoriana re-inventada por Gibson e Sterling é uma maravilha a parte. É possível ver todo espírito vitoriano numa Inglaterra que nunca existiu, com suas mudanças que começam à partir da criação da Máquina e pouco antes do golpe de estado de Wellington, que nunca existiu.
Personagens históricos e fictícios (estes, bem poucos na verdade), se misturam na Londres que nunca existiu. Cada qual vivendo vidas alteradas pela tecnologia e mudanças culturais. Benjamin Disraeli, que nesta época deveria ser o primeiro ministro ao invés de Lorde Byron, não passa de um jornalista e escritor um pouco mau afamado em seus círculos. Nem mesmo The Two Nations, romance escrito pelo Disraeli histórico, escapa das mudanças, pois Sybil, a prostituta que figura entre os personagens principais, na obra original se casaria com Charles Egremont, homem que no steampunk destruiu sua vida.
É notável ver toda a comunidade científica desvelada pelo olhar de Edward Mallory. A salada de referencias históricas afetadas pelo surgimento da Máquina é um dos pontos mais bem construídos do livro, as discussões científicas que o paleontólogo fictício mostra a situação da ciência na sociedade tecnocrática e em como um homem que nunca existiu interagia com personalidades históricas. Em especial, as passagens onde se discute o Catastrofismo e sobre a natureza dos dinossauros mostram muito bem a cultura científica que se formou na Inglaterra (embora muitos leitores possam preferir momentos como quando Mallory, seus irmãos e o policial Fraser vão à caça do “líder” da nova revolução ludita, o capitão Swing).
Em a Máquina Diferencial, Willian Gibson e Bruce Sterling mostram que escrever em pareceria, embora traga o dobro do trabalho, como eles mesmos dizem, podem trazer uma obra memorável. Todos os sete anos de pesquisa e escrita parecem ter valido a pena, pois realmente construíram um romance histórico de um passado que nunca existiu, as referências a mais de trinta personalidades que realmente existiram em nossa histórica mostram o quão bem arranjado foi o romance. O palavreado e a postura dos personagens também foram de muita eficácia, pois remetem muito bem o sabor da Era Vitoriana.
A edição brasileira da Editora Aleph, apesar de carregar um atraso de mais de vinte anos – a obra foi lançada em 1990 – é de altíssima qualidade. As paginas são melhores que a maioria das publicações brasileiras, fisicamente o livro é de altíssima qualidade. A tradução, feita por Ludimila Hashimoto, é muito esmerada, conseguindo passar muito bem o clima e o palavreado de uma época antiga. No fim do livro, glossários com termos da época e breve histórico das várias personalidades históricas situam qualquer leitor. Um posfácio escrito pelos autores para a edição comemorativa de vinte anos e um mapa completam o volume.
A máquina diferencial é um prato cheio não só para os amantes do steampunk, mas também para aqueles que gostam da era vitoriana. Toda a arrogância burguesa, os cavalheiros, as damas, o palavreado rebuscado, espartilhos, cartolas e anáguas, bem como o panorama de uma Londres tão semelhante – mas ainda assim tão diferente – podem ser encontrados. Cultura, política e ciência especuladas, bem como máquinas a vapor e o punk em forma de revolta social são coisas que um leitor pode ter certeza de que irá encontrar.
Para mais resenhas, contos, e etcs https://eoutroscenarios.wordpress.com/