Antonio Luiz 27/08/2010
Vinte anos depois que William Gibson encerrou a trilogia Sprawl, formada pelos romances "Neuromancer", "Count Zero" e "Mona Lisa Overdrive", a editora Aleph, que editara o primeiro volume no Brasil em 1991, agora o relançou (com o título de Neuromancer 25, pois já comemora “bodas de prata”) e publicou os dois últimos volumes dessa saga que marcou época na ficção científica. Todos foram caprichadamente traduzidos, revisados e editados, o que está longe de ser regra na ficção em geral e muito menos na ficção científica em especial.
O diabo é que, de especulação ousada, a obra de Gibson que virou moda e fundou o subgênero cyberpunk – devido à combinação da tecnologia da informação com uma atitude de rebeldia e desprezo pelas convenções típica do punk dos anos 80 – já começa a tornar-se, vinte anos depois, um retrofuturismo. Ou seja, um futuro do pretérito, um futuro imaginado que chegou a ser mais ou menos consensual em seu tempo, mas hoje parece datado, apesar de todos os enfeites futuristas.
Pense-se nas máquinas cheias de rebites e engrenagens visíveis de Jules Verne, nos desenhos aerodinâmicos das engenhocas de Flash Gordon, nos carros voadores dos Jetsons. E no ambiente social e político no qual essas maravilhas se movimentavam. No caso do autor francês, são desafios entre cavalheiros vitorianos. A criação de Alex Raymond salva uma donzela em perigo em meio a uma guerra colonial contra o perigo amarelo. No desenho de Hanna-Barbera, uma dona-de-casa em tempo integral cerca-se de eletrodomésticos futuristas, incluindo uma mucama cibernética.
Não que deixem de ser interessantes. Esses mundos imaginários podem ser fascinantes à sua maneira e as aventuras ali narradas podem continuar a ter o poder de emocionar e maravilhar. Mas seu encanto – assim como, digamos, o da “Terra Média” de J.R.R. Tolkien – passou a ser o da fantasia exótica, o da ultrapassagem dos limites da banalidade quotidiana. Deixou de ter o teor provocativo de um futuro que o leitor vê como possível, sendo levado a pensar se tal possibilidade deveria ser perseguida ou evitada.
Uma fantasia exótica pode ser mais que diversão escapista. Pode ser, entre outras coisas, um convite a considerar outros valores, a pensar a vida real de um ponto de vista novo, ou ao menos um lembrete de que este não é o único mundo e a única maneira de viver que pode ser imaginada. Mas não incita a pensar com a urgência e a seriedade de algo que pode realmente estar a caminho e nos atropelar na próxima esquina, como "Admirável Mundo Novo" de Aldous Huxley em 1932 ou "Não Verás País Nenhum" de Loyola Brandão em 1981. Ou que pode estar a nosso alcance e valeria a pena tentar conquistar.
Pelo atraso com que chega, o livro talvez reforce a percepção algo irônica que o leitor brasileiro – e à vezes também escritores, principalmente (mas não só) os da chamada “primeira onda”, dos anos 60 – tende a ter da ficção científica, como não mais que uma variedade de fantasia, talvez mais fria, pretensiosa e obscura do que o usual.
Não que Gibson desdenhe a fantasia. Em 1990, junto com Bruce Sterling, inaugurou com "The Difference Engine" ("A Máquina Diferencial", que também merece tradução), uma variedade de fantasia que consiste em um retrofuturismo intencional: um mundo desenvolvido a partir da imaginação de Verne e outros autores do século XIX. A sociedade continua basicamente vitoriana e a tecnologia fundada em máquinas a vapor, mas a invenção precoce do computador (movido a vapor, é claro), ou “máquina diferencial” permite realizar avanços que a ficção científica da época apenas sonhava, bem como fazer do Império Britânico um poder ainda maior do que foi na realidade. Também esse livro inaugurou um subgênero que, por analogia, foi chamado steampunk (apesar de mais nada ter a ver com punks).
"Neuromancer" e seqüências não foram, porém, pensadas como fantasias e sim como futuros possíveis em prazo não muito distante – ainda que hoje já não pareçam convincentes. À resenha de Marco Antonio Barbosa no Jornal do Brasil, foi dado o título algo enganoso de “William Gibson, o escritor que previu o presente”, mas como adverte o texto, os anacronismos saltam à vista, ainda que uma ou outra de suas “previsões” possa ser identificada em realidades ou tendências do mundo de hoje e que alguns dos termos e temas inventados por Gibson tenham se tornado clichês e incorporado à linguagem da ficção científica – como o conceito de Matrix, usada na conhecida trilogia do cinema.
Como nota Barbosa, Gibson abre "Neuromancer" descrevendo o céu de uma megalópole do futuro – a Sprawl que se estende de Boston a Atlanta – como da cor de “uma televisão sintonizada em um canal fora do ar”. Os adultos certamente ainda entendem o que ele queria dizer, mas hoje uma tevê fora do ar é da cor que um céu deveria ter, ou seja, azul... O que era para ser uma metáfora moderna, ou pós-moderna, passou a ter um sabor antiquado, saudosista.
No mundo de Gibson são comuns objetos e invenções ainda vistos como possíveis – transplantes de todo tipo de órgãos, próteses cibernéticas, aviões-robôs com inteligência artificial, implantes cerebrais – e conceitos que podem ser relacionados com realidades de hoje, tais como “cowboys de consoles” (que hoje chamaríamos de hackers, sendo “console” algo parecido com um laptop), “ICE” (o que hoje chamaríamos de firewall, ou seja, restrição de acesso de um sistema a estranhos), realidades virtuais e ciberespaço.
Não é pouco, considerando que em 1983, o que um dia se chamaria internet ainda era chamado ARPANET e conhecido apenas de algumas universidades e centros de pesquisa ligados ao Departamento de Defesa dos EUA.
As pessoas substituem braços e olhos como quem troca de tênis, viajam para estações espaciais como quem pega a ponte aérea e ligam ao crânio “dermatrodos” – implantes eletrônicos parecidos com pen drives – que os transformam em terminais vivos da Net, ligam-nos entre si ou lhes proporcionam conhecimento instantâneo e descartável de japonês ou da pilotagem de caças. Por outro lado, não existe nada parecido com o hoje onipresente celular – os telefones continuam obedientemente presos a mesas e cabos. O fax, que naquela época era símbolo de modernidade, é usado em toda parte, inclusive para transmitir jornais à distância.
Soa datada, desde a implosão da “bolha” especulativa japonesa em 1990, a perspectiva de um domínio global da Yakuza e de onipresentes e impiedosas transnacionais japonesas. Mercenários a serviço destas são “samurais urbanos”, o Asahi Shimbun é lido em todo o Sprawl, palavras japonesas estão integrados à gíria quotidiana e assim por diante. O sushi e os mangás de fato conquistaram o mundo, mas não passou disso. Claro, para atualizar esse aspecto, talvez bastasse trocar japoneses por chineses...
A própria rede de computadores, tema e cenário da maior parte da trama, parece bem mais tosca do que aquilo que hoje conhecemos como internet, embora os computadores a ela ligados sejam tão sofisticados que a partir deles evoluíram inteligências artificiais incontroláveis, com a personalidade de deuses do vodu. Em vez das ricas imagens, sons e movimentos tridimensionais a que já nos acostumamos a apreciar no mais simples dos monitores, a sofisticada realidade virtual de Gibson mostra imagens tão simples e esquemáticas como as que se veria num velho Atari.
Além disso a rede, embora vital para os protagonistas, não parece estar realmente integrada à vida da maioria das pessoas. É domínio de grandes empresas, de especialistas e de uns poucos penetras. Pessoas comuns não falam dela e aparentemente não a usam ativamente. Limitam-se a descarregar dela, por meio de implantes cerebrais, o equivalente virtual de novelas de tevê. Nada é interativo. Nada de e-mails, chats, sites de busca, sites de relacionamento, notícias online, jogos multiplayer e outras trivialidades que hoje ocupam grande parte do trabalho e do lazer de cada dia.
Até certo ponto, isso é condicionado pela forma e pelo gênero: é difícil fazer de uma realidade futurista e em boa imaginária o tema de uma aventura e ao mesmo tempo tratá-la como uma realidade que se tornou quotidiana. Verne, ao imaginar máquinas voadoras, também não as pôs ao alcance de qualquer um que pagasse a passagem. Concebeu uma máquina pioneira, a serviço de um inventor decidido a conquistar o mundo ("Robur, o Conquistador").
O que talvez nos pareça mais familiar no mundo de Gibson e ainda estava longe de ser tão real em sua época é a globalização neoliberal. Os personagens viajam por todo o mundo e cruzam-se com figurantes de todas as nacionalidades com uma facilidade que certamente parece mais verossímil hoje que há 25 anos.
É um mundo dominado mais por corporações transnacionais (principalmente japonesas) do que por governos nacionais, raramente mencionados e aparentemente irrelevantes. Todos os mercenários e as armas mencionados na trilogia estão em mãos de empresas privadas, inclusive caças supersônicos e canhões eletromagnéticos tão poderosos quanto armas nucleares táticas. Com exceção do “vodu” na rede, há poucos sinais de religião e nenhum de ideologias políticas ou rivalidades nacionais.
Os personagens principais parecem totalmente vazios de ideais filosóficos, políticos ou religiosos, às vezes até de vontade própria. Têm estilo, têm “atitude”, mas não posicionamento, como nota o crítico Roberto Causo. Querem apenas ganhar dinheiro, sobreviver e fazer upgrades em suas próteses e acessórios. Caso tenham muito sucesso, acabam por se tornar propriedade empresarial para todos os efeitos. Escravizados por contrato, só conseguem escapar de suas proprietárias se forem resgatados por mercenários de alguma empresa rival, para mudarem de amo. Quando muito, conseguem pensar em escapar da servidão corporativa e ter uma vida egoisticamente isolada e sossegada.
Caminhar na direção desse cenário que Gibson descreveu claramente como distopia (por mais que tenha sido glamurizado por seguidores e imitadores) parecia uma perspectiva bem plausível nos anos 90, mas algumas dessas tendências mudaram de direção, para o bem ou para o mal. Desde 11 de setembro de 2001, o ressurgimento dos impérios, dos particularismos étnicos, dos fundamentalismos religioso e das rivalidades entre as potências está na ordem do dia e dificilmente sairá da pauta tão cedo. O risco da escravidão corporativa ainda parece plausível, mas o fundamentalismo religioso e os nacionalismos estão aí para lembrar que para toda ação, há uma reação: nunca será tão fácil ao capital se apoderar sozinho do espírito humano.
O mundo criado por Gibson nos anos 80 continua fascinante e capaz de inspirar estudos culturais e literários, não só nos EUA e Japão, onde é tema de várias obras (tais como "Virtual Geographies", de Sabine Heuser e "Full Metal Apache", de Takayuki Tatsumi) como no Brasil, onde já inspirou pelo menos uma obra de fôlego, "A Construção do Imaginário Cyber", de Fábio Fernandes (Editora Anhembi-Morumbi, R$ 22, 107 páginas), que analisa cuidadosamente tudo que o livro tem de atual, que é muita coisa – mecanização e cibernetização das pessoas, transformação das relações humanas, confusão de real e virtual, substituição do posicionamento pela moda ou “atitude”. Márcia Fusaro, professora de Comunicação Social, escreveu também um longo artigo sobre as diferenças entre as duas traduções de "Neuromancer", a de 1991 e a de 2003, na revista "Cenários da Comunicação", volume 5 (2006).
Ainda assim, do ponto de vista do leitor casual e desprevenido, já não é mais um futuro perturbadoramente plausível, mas uma curiosa mistura de futuro, passado e enfeites fantasiosos. De metonímia, passou a metáfora. O que era possibilidade próxima virou um mundo de fantasia um tanto distante, o que parecia o revelar de uma tendência irresistível e ameaçadora aparece agora como uma alegoria exótica, coisa que soa mais fascinante e curiosa que perigosa, como uma história de vampiros ou de espada e magia. Não dá mais a provocante sensação de iminência e inquietação que só uma ficção científica ousada e recém-saída do forno pode proporcionar.