Negro Amor

Negro Amor Ricardo Bellissimo




Resenhas - Negro Amor


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Ben Oliveira 21/04/2014

Estômago forte
Quando recebi o livro Negro Amor, do escritor Ricardo Bellissimo, depois de ter lido dois romances dele, pensei que não pudesse me impressionar mais. Eu estava errado, e como! Seus textos não são para todos. Pessoas sensíveis demais e hipócritas podem não conseguir passar das primeiras páginas. A linguagem ácida, morbidez e um estilo bem sombrio exigem do leitor um estômago forte e equilíbrio, o preparo do corpo, da alma e da mente para as pancadas e sopros, cortesias dos personagens presentes nas obras de Bellissimo. Negro Amor tem 346 páginas e foi publicado em 2011, em São Paulo, pela Via Lettera Editora.
Em Negro Amor, a protagonista é uma legista que deseja se apaixonar. As trevas da personalidade da personagem fazem com que ela acabe se aproximando de homens com um lado tão sombrio quanto o dela e colocando sua vida em perigo após cada encontro. A personagem principal exerce um fascínio sobre o leitor e outros personagens, daqueles que só os vilões excêntricos e sensuais conseguem, a ponto de não se importar de conhecê-la ou conviver com ela.
Narrado em 1ª pessoa, o romance traz uma história marcada pela frieza, carência e loucura de uma protagonista que passa tanto tempo realizando a autópsia dos mortos que acaba perdendo a sensibilidade e atenção necessárias para o desenvolvimento de relacionamentos com outras pessoas. Na verdade, desde o primeiro capítulo de Negro Amor, a narradora relata que desde pequena ela sempre teve preferência pela perspectiva do vilão e não dos heróis. Não bastasse sua obscuridade, a própria protagonista conta que já não acredita em príncipe encantado.
Como é interessante perceber a maneira que a protagonista se envolve com as outras pessoas, analisar o seu comportamento e como o cérebro dela lhe prega peças, fazendo-a confundir sonhos com a realidade e ao mesmo tempo a ajuda a decifrar seus mistérios. Com todas as transformações do gênero do terror ao longo dos séculos, Negro Amor acerta em cheio na escolha de uma das mais assustadoras e perturbadoras, sacudindo a alma do leitor, com o terror psicológico mesclado a um goticismo moderno. Quem já leu os outros livros do escritor Ricardo Bellissimo, como Sombras e Nefastos ou Sufoco, sabe bem do que eu estou falando.
Em Negro Amor, por exemplo, Ricardo Bellissimo mais uma vez disseca a alma dos personagens. Quando vi que a protagonista era uma legista, percebi que não haveria profissão melhor para ela que pudesse combinar com a essência dos romances escritos por Bellissimo, já que o autor, literalmente, faz uma autopsia não só nos seus personagens principais, descobrindo tudo o que há de escuro, podre e verdadeiro e que muitas pessoas insistem em esconder, mas também mergulhando na mente do leitor, quase como se uma voz soprasse em seu ouvido: “Eu sei o que você está pensando. Eu sei o que você está sentindo.”.
As obras de Ricardo Bellissimo costumam deixar as hipocrisias sociais de lado. Se você é o tipo de pessoa que deseja um livro com um romance água com açúcar para ler, onde apesar das dificuldades o amor romântico, idealizado e fantasia prevaleça no final, esqueça. Negro Amor, provavelmente não é para você. O romance é ideal para quem conhece que para existir o amor é preciso reconhecer o outro e gostar não só do que as pessoas mostram aos outros e negam em si mesmas, mas aceitar o lado sombrio, os problemas, as loucuras, o que as fascina e excita, mesmo que não seja convencionalmente visto com bons olhos.
Existe uma intertextualidade nos romances de Ricardo Bellissimo, não só indo contra as obras que vendem uma fantasia inalcançável para os leitores, como a do amor perfeito, e convergindo com o horror marcado na alma. Negro Amor dialoga muito bem com os outros livros do escritor. Em Sombras e Nefastos, por exemplo, romance todo escrito no formato de cartas, mas nem por isto menos interessante – na verdade, fascinante a ponto de ver a capacidade de escrita e também de raciocínio do autor –, os personagens estão envoltos em um drama familiar marcado por mortes, incesto, violência, luxúria, inveja. Os personagens de Ricardo Bellissimo costumam desejar sem medo, sem se importar com o que os outros pensam e isso ao mesmo tempo em que pode ser libertador, também traz um assombro mortal. Já em Sufoco, narrado em terceira pessoa, a crítica implícita dos diferentes comportamentos e classes sociais, a paixão e o desejo carnal, apesar de estarem presentes e serem o motor para uma série de eventos destrutivos, competem com o fascínio exercido pela religião, meios de comunicação de massa e capitalismo.
Para quem, como eu, que gosta de Edgar Allan Poe, onde os textos são marcados por aquilo que causa medo nos seres humanos, Negro Amor oferece uma porção generosa daquilo que pode enojar a alguns, mas causar prazer a outros, mostrando um pouco da complexidade humana, como o sexo acompanhado de violência, a coprofagia, o fetiche por cheiros e o relacionamento sexual entre pessoas da mesma família. Imagino que para escrever Negro Amor não seja necessário somente dominar bem as técnicas sobre criação literária, e sim o principal, a capacidade de observar e compreender os seres humanos, não só pelo que os seus egos refletem na sociedade, porém nos ecos da mente e nos desejos da alma.
A imaginação é uma ferramenta poderosa quando induzida corretamente. Muitas pessoas acham filmes de terror mais assustadores do que os livros de terror, talvez pelo poder das imagens e dos sons. No entanto, Negro Amor é tão assustador quanto um filme, porque gela a sua alma e explora todos os sentidos e os mecanismos que não estamos conscientes que podem afetar nossos raciocínios e maneiras de enxergar a vida. Sabe aquele tipo de livro que te emociona, faz refletir e incomoda pessoas hipócritas, com seus falsos puritanismos? Assim é Negro Amor, mostrando as cicatrizes que o amor e a vida nos deixa ao longo de nossas existências, pois como diziam os grandes pensadores: “Viver é sofrer”. Da mesma forma, sem o sofrimento, sem essa verdade feia, repulsiva e terrível que guardamos dentro de nós mesmos, o amor não passa de um teatro, de um jogo de esconde-esconde, onde escondemos os podres e só os libertamos em momentos de raiva ou profunda alteração emocional e o tempo inteiro controlamos nossos instintos (sexuais ou não) parar mostrarmos exatamente o que o outro quer ver. Afinal de contas, enxergamos somente o que queremos enxergar.
“Faz algumas semanas que vivo na agonia fronteiriça entre o real e o imaginário, como se já não soubesse mais distinguir entre dia e noite, o doce e o amargo. O paraíso e o inferno” – trecho do livro Negro Amor. Em algumas passagens do livro é possível ver a protagonista lidando com o seu dilema, estaria enlouquecendo graças ao seu trabalho e as sombras que encobrem o seu coração? Seriam os seus encontros verdadeiros com pessoas vivas ou conversas imaginadas com os cadáveres que a protagonista está realizando a autopsia? Há inúmeras possibilidades de interpretar os comportamentos da legista.
No meio dos devaneios da protagonista e dos encontros frustrados, onde apesar de ela mesma estar anestesiada com a vida e ter predileção pelos cantos escuros de sua mente, ela reconhece que até mesmo na loucura há limites quando se vê em posições desconfortáveis e até mesmo perto da morte, nesta busca pelo amor. “É preciso um louco para reconhecer outro”. Há um momento em que a legista se fecha para o mundo; ela está desequilibrada demais e não há como ajudar os outros, quando não consegue ajudar a si mesma. A irmã com tendências suicidas e problemas no casamento reclama a falta de atenção da legista, mas não há muito o que se possa fazer – ela está perdida dentro do próprio universo que criou, onde sua mente criou um labirinto e as fronteiras do mundo real ao invés de ajudá-la a se reerguer, contribuem para sua decadência.
O final de Negro Amor é surpreendente. É muito bom ver o momento de revelação da protagonista, onde ela percebe que apesar dos limites entre o real e o imaginário estarem separados por uma fina camada, ela ainda é lúcida – diria que mais lúcida do que muitas que procuram o inalcançável e passam a vida toda correndo atrás do amor, encontrando o seu lado negro que é o do desequilíbrio. Ricardo Bellissimo é uma ótima aposta para a literatura nacional, onde seu estilo único marcado pela acidez e linguagem direta, sem escrúpulos e hipocrisias, aliados à habilidade do bom observador e contador de histórias, o que por si só já o tornariam um bom autor, surpreendem quando o escritor encarna o papel de psiquiatra e médium, expondo tudo o que os seus personagens e humanos insistem em esconder.


site: http://www.benoliveira.com/2014/04/resenha-negro-amor-ricardo-bellissimo.html
Fabio Shiva 28/02/2015minha estante
Linda resenha!




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