Victor Dantas 02/10/2020
Crime ou Crimes?
2020 definitivamente está sendo um bom ano de leituras, e, com direito a vários clássicos!
Recentemente, em setembro, tive a oportunidade de participar uma leitura conjunta de Crime Castigo (F. Dostoiévski), que por sinal é um clássico da literatura universal e da literatura russa. Sim, foi um desafio, mas que desafio lindo hein?
Uma breve sinopse:
A trama tem como protagonista o Raskólnikov, um estudante universitário que vive na antiga São Petersburgo, que na época era capital do Império Russo. Ambicioso, orgulhoso, sonhador, esses talvez seja os adjetivos que mais fazem jus a personalidade do Raskólnikov.
Como você deve imaginar pelo nome do título da obra, o enredo tem como base um crime cometido, no qual tem como autor o nosso protagonista, e o castigo que esse crime vai proporcionar ao mesmo.
Considerado “O maior thriller psicológico de todos os tempos”, Crime e Castigo retrata o a natureza humana na sua forma mais crua, tendo como pano de fundo a pobreza, a miséria, a desigualdade social que nos coloca em meio a situações caóticas, sombrias e provoca gatilhos para ações até então injustificáveis.
Considerações pessoais:
a) Escrita e narrativa
O meu maior receio com a obra antes de começar era a escrita, não só por ser de um autor russo, mas por ser um clássico, no entanto, eu fui surpreendido positivamente.
A meu ver, a escrita do Dostoiévski é acessível para qualquer leitor que já tenha tido alguma experiência com clássicos escritos em 1800/1900. O que diferencia, é a narrativa, aspecto que é o principal forte dessa obra.
Dostoiévski tem uma narrativa descritiva que pode acabar não agradando a todo mundo, mas que para mim agradou e muito.
O autor se preocupa em desenvolver o enredo conservando os detalhes mais minuciosos possíveis, seja na construção dos personagens, dos diálogos ou da ambientação.
É tudo muito bem pensado, e bem encaixado, mas, que ele vai entregando aos poucos.
Na obra, existe narrador tanto na primeira pessoa quanto na terceira, mas, o que mais prevalece é o narrador em primeira pessoa, e aqui tem um fato importante que preciso destacar.
Existe muito fluxo de pensamento dos personagens, o autor as vezes escreve 2 ou 3 páginas de pensamentos e monólogos. Confesso que isso me atrapalhou no começo, mas, com o andamento da história, eu já estava me deliciando com tais monólogos.
E, talvez esse seja o aspecto chave da obra, pois, é a partir desses fluxos de consciência e monólogos que o autor sustenta todo o desenvolvimento psicológico.
O recurso é utilizado para apresentar o personagem em sua essência ao leitor, afinal, como disse acima, o autor se preocupa com os mínimos detalhes, e para mim, isso faz total diferença numa obra. Aprofundamento. Camadas.
Aliás, o que não falta nessa obra é camadas, Dostoiévski, utiliza isso não só para conduzir o enredo, mas para inserir os conflitos e as reviravoltas que vai aparecendo ao longo da história, afinal, o livro é dividido em 6 partes.
b) Os personagens
O nosso protagonista é o Raskólnikov, um estudante universitário de direito, que carrega consigo ambições para ascender na elite russa. Se fosse para defini-lo em uma palavra, seria: complexo.
É o personagem com mais camadas na história, e que a cada página, a cada parte, vai mostrando cada uma delas para nós. Seus dilemas internos denuncia uma sociedade hierárquica, desigual e que vive de aparências.
Além dele, temos outros personagens secundários que sustentam a obra e que fazem uma diferença e tanto no enredo: Razumíkhin, Dúnia, Sônia, Katierina, Lújin, Svidrigáilov.
É um núcleo de personagem espetacular, com personalidades particulares, que proporcionam diálogos interessantes, reviravoltas e até mesmo risadas.
Cabe destacar outro aspecto importante: as condições socioeconômicas da maioria dos personagens são bem básicas. Não há nenhum personagem na história rico de fato, com altos cargos.
São pessoas da base, o povão. Gente pobre.
c) Ambientação
Império Russo: São Petersburgo, 1800. Esse é o cenário e o tempo no qual a obra se passa. Somos levados pelas ruas da antiga capital russa, que foi planejada e construída segundo os interesses do tsar Pedro, o Grande.
Uma cidade que na época foi construída sem os devidos cuidados de planejamento urbano, e que foi palco de manifestação de inúmeros problemas urbanos: desigualdade, ausência de saneamento, favelização e criminalidade.
O autor explora e utiliza esses fatos nas descrições das moradias claustrofóbicas (cortiços), onde os personagens da história vivem, nos esforços e trabalhos precários que os personagens realizam para ter o que comer, o que vestir, onde dormir.
Descreve também os pontos turísticos da cidade, avenidas, praças, e o leitor consegue visualizar os lugares facilmente pelas descrições contidas na história.
Na edição que li (Todavia), existe dois mapas de Petersburgo que serve como guia para gente durante a leitura, para acompanharmos melhor os passos dos personagens.
Enfim, é uma experiência de leitura e viagem juntas.
d) O Crime e o Castigo: Reflexões
Apesar da história ser sobre um crime específico, a obra dá abertura para outros crimes que são inseridos na história implicitamente.
Por exemplo, o crime da desigualdade social, que fere e violenta os mais vulneráveis, a base, que fica subjugada pelo sistema hierárquico que prevalece na nossa sociedade desde a antiguidade. Esse mesmo crime, que dá privilégios ao opressor e instala limites ao oprimido.
O autor faz inúmeras críticas sociais nesse sentido, mas por entrelinhas (diálogos, descrições).
Em relação ao crime que é cometido pelo nosso protagonista, apesar de ser injustificável, (pois, a vítima é um inocente), ainda assim conseguimos encontrar condicionantes externos, raízes, que estão na sociedade. Logo, para mim, existe uma possibilidade de uma crítica tridimensional sobre o crime.
E por fim, sobre o castigo que é concedido ao protagonista, o autor também dá abertura para uma discussão a respeito de dois castigos, e deixa para nós leitores o dever de identificá-los e interpretá-los.
Sobre o desfecho: precisão e coerência.
Mais que uma leitura 5 estrelas. Um favorito.