Henrique Fendrich 30/06/2022
Há coisas muito boas, excelentes mesmo, nesse livro, mas também problemas graves.
Inicialmente, eu aprendi muito com essa história. Nosso conhecimento sobre o período da escravidão é cheio de generalidades e superficialidades, tratando a grande massa de pessoas escravizadas como se fosse um único bloco de mesma cultura, crenças e tradições, vindas todas de uma genérica "África", como se o continente não tivesse várias realidades.
Para a maioria das pessoas, entre as quais eu me incluía, ainda é uma surpresa quando se diz que vários escravizados eram muçulmanos (os malês ou os muçurumins) e que, além disso, sendo eles bastante cultos, estiveram por trás de revoltas importantes no país. Por não conhecer as distinções entre os africanos, também não costumamos saber nada a respeito das eventuais rivalidades entre eles ou como os diferentes grupos interagiam entre si. E isso o livro oferece, um painel bem interessante sobre a interação entre várias culturas africanas.
Principalmente em suas primeiras partes, também é possível que alguém que ainda não tem qualquer conhecimento específico sobre religiões de matriz africana fique um pouco mais informado sobre elas. Uma das que se sobressaem é a religião iorubá, com uma mitologia muito rica que, inclusive, iria inspirar o candomblé. Entre as crenças da cultura iorubá que mais gostei de conhecer pelo livro está a dos "abikus", crianças que "nascem pra morrer".
O livro também é muito útil para tomar conhecimento de eventos históricos que quase não são abordados em aulas de História fora da Bahia, como a Revolta dos Malês e a inusitada "Cemiterada", quando, literalmente, a população baiana declarou "morte ao cemitério".
Outra situação praticamente ignorada pelos brasileiros e que aparece com destaque no livro é a existência na África (Benim, Nigéria e outros países) de comunidades de "retornados" do Brasil, ou seja, ex-escravizados que, ou por serem expulsos ou por outra contingência, voltaram à terra de origem. A história mostra que então havia uma rivalidade entre esses que estiveram no Brasil e os que nunca haviam saído de lá. São informações bem interessantes.
Ler o livro, então, permitiu que eu aumentasse consideravelmente o meu conhecimento sobre a história da escravidão em geral, ou, ao menos, na Bahia (embora a trama também se desloque para vários lugares no Brasil, sem falar naqueles na África). Nessa perspectiva é que estão as coisas que chamei de "boas" e "excelentes" no livro.
Agora os problemas. A relação entre ficção e realidade me parece problemática.
A autora conta que a história do livro estava escrita em uns papéis velhos que uma criança, sem saber, usava para desenhar. Havia partes ilegíveis ou faltando e ela então completou com ficção. Ela diz na introdução que "algumas partes" do livro foram inventadas, sem precisar quais, e que "quase tudo" corresponde à história narrada pela mulher nos papéis.
Com isso, pensei em dar crédito histórico à maior parte do que lia. Entretanto, comecei a duvidar quando notei o que me pareceu uma tentativa de "forçar" a relação da personagem com figuras famosas, como a história do Tiradentes e depois com o Joaquim Manuel de Macedo, a ponto de dizer que "A moreninha" foi inspirada nela.
Alguns detalhes de eventos históricos também me pareceram bem duvidosos, e houve ao menos um momento com uma escorregada cronológica feia, quando, em 1848, um homem dizia que o pai do seu pai havia chegado à África em 1624 (uma distância impossível).
A desenvoltura e a minúcia com que a personagem narra em detalhes eventos do passado, citando sempre corretamente nomes que não diziam respeito ao seu cotidiano, sugerem não uma memória extraordinária, mas a intervenção da autora da história. É bem difícil imaginar que uma pessoa "real" entrasse em tantos detalhes como a narradora do livro, o que, por vezes, faz com que o livro se torne enfadonho, pelo excesso de descrições sem relação com a trama principal (e ao estilo da narração parece faltar o que uma amiga chamou de "alma").
Então eu não sei o que exatamente havia nos papéis que a autora encontrou (e que são passíveis de erros também) e o que veio da autora. É bem possível também que leitores citem certos detalhes do livro como verdade histórica, quando não o são. Isso é um mal de todo livro de ficção histórica, mas esse sugere que "quase tudo" é real. Eu preferiria que a autora dissesse que fez adaptações para que a história que encontrou se transformasse na de Luiza Mahin, figura cuja existência ainda não foi comprovada.
Isso me incomodou durante a leitura, que me parece bastante útil para se conhecer certos eventos históricos, mas então pesquisá-los e aprofundá-los em outra parte. Talvez se esses eventos e as abordagens que privilegiam a voz do negro como agente da história no Brasil fossem mais conhecidos e disseminados, o livro não faria o mesmo sucesso, porque aí se sobressairiam mais as questões de estrutura e estilo.