Ladyce 03/01/2010
Tema atual, prosa moderna: tudo para agradar
Nas duas últimas décadas do século XX, a cidade de Raleigh na Carolina do Norte, EUA, vivenciou um grande surto econômico. Com isto passou a ser um lugar ideal para muitos americanos morarem. Habitações de todo tipo se fizeram necessárias e especuladores imobiliários assim como construtores juntaram esforços. De um mês para o outro via-se comunidades inteiras aparecerem, onde antes só havia um sítio ou uma pequena fazenda nos limites urbanos da cidade. Muitas vezes, lagos foram escavados, enormes, suficientes para uma pequena competição das menores embarcações. Com freqüência estas comunidades também tinham seu próprio campo de golfe. No início, estas novas residências apareceram preenchendo os lotes de ruas já existentes, preferencialmente em bons bairros; aqueles já delineados quanto ao seus habitantes. Mas quando a migração interna do país — do centro-oeste ou norte para Raleigh, — aumentou, comunidades começaram a aparecer, cujo perfil era muito menos democrático do que a cidade havia tido até então. Comunidades exclusivas, fechadas com muros e portões, com guardas e cercas eletrônicas apareceram; afinal, Raleigh e Cary, seu subúrbio, eram o próprio vale do silício da costa este dos EUA.
Muitos foram os lagos e campos de golfe criados nesta região. Pertenciam a comunidades com centenas de casas, separadas por tamanhos e preços diferentes. Não muito diferente do plano original de Brasília. Casas de um certo preço, de um certo padrão próximas às suas semelhantes. Edifícios de pequenos apartamentos no canto do terreno dedicado aos edifícios. Numa área, casas tinham telhas de asfalto, em outra, casas de dois andares. Tudo dentro das regras do plano urbano de desenvolvimento. Não há como sair da norma nestas comunidades. Assim disfarça-se, também, a segregação financeira.
Nestas comunidades fechadas, que lembram pequenas aldeias porque têm muitos serviços dedicados a uma pequena população: escolas de ensino básico, creches e até estádios esportivos; o que se vende é a sensação de segurança. Ninguém questiona a falta de liberdade de mudar a cor do lado de fora da casa ou o tipo de telhado. Cada uma tem regras específicas e claras estipuladas nas escrituras, muitas das quais seriam inválidas em território brasileiro.
Vem à mente neste momento um bairro em Raleigh, construído à volta de um lago – também escavado pelo homem. Chamava-se: Rue Sans Famille. Havia é claro muitas ruas nesta comunidade de centenas de casas. A diferença deste bairro para outro estava numa única cláusula na escritura: a proibição de crianças morarem neste condomínio. Assim, se você é jovem e está pensando aumentar a família, tem que primeiro vender a sua casa. 16 anos era a idade mínima para morar neste local.
Eu me expando em explicações para simplesmente dizer que quando Claudia Piñeiro descreveu em seu livro As viúvas das quintas-feiras [Editora Alfaguara] a comunidade fechada nos arredores de Buenos Aires, pude imaginá-la muito bem. Como seus semelhantes americanos, as pessoas que decidem morar em Altos de la Cascada acreditam que não só o ar que respiram é mais limpo, mas que todos os outros seres humanos não merecem nem o ar e nem o luxo que lhes é servido. Como na Argentina, no Brasil e nos Estados Unidos, moradores de vizinhanças como essas fogem do crime, do perigo real ou imaginado que acreditam existir nas partes das cidades mais populosas e menos seletivas
Quando, no entanto, a economia local, regional ou mundial muda o perfil dos empregos e das companhias; e o desemprego, nunca antes previsto, começa ser percebido aqui e ali, penetrando até mesmo no território santificado destas comunidades, os habitantes destas ilhas de bem-aventurança, acham difícil manejar a realidade. E de repente, se descobrem espiando vizinhos, analisando problemas com seus pares, com seus companheiros de golfe. Uma mudança brusca de status social se mostra difícil de ser encarada. Há imediatamente uma divisão entre os verdadeiros sobreviventes – aqueles que se adaptam às novas circunstâncias – e os que insistem em viver como se nada pudesse os afetar. A discriminação, no início sutil, chega a níveis impensáveis e a resoluções ainda mais incompreensíveis.
Passado na virada do século XXI, na Argentina, época em que aquele país sofria com uma crise econômica, os habitantes de Altos de La Cascada preferem ignorar a realidade fora das cercas de metal que os protege. O romance, que tem um tempo rápido, maravilhoso, em plena compatibilidade com a época que está retratando, é muito intenso por mais ou menos seus primeiros dois terços. Depois perde um pouco a mágica para recuperá-la no capítulo final com uma conclusão completamente inesperada. Este final renasceu o meu interesse pela leitura e “salvou” o romance para mim. Apesar do título, não são só as mulheres desta comunidade que são retratadas. Seus maridos, seus filhos são tão parte da história quanto elas. Diversos assuntos muito atuais são retratados de tal maneira que nos fazem pensar criticamente a respeito da sociedade em que vivemos: anti-semitismo, preconceito de cor, espancamento e abuso de mulheres, preferências sexuais inusitadas. E para aumentar o nosso interesse há um mistério que precisa ser resolvido.
Acho que este é um ótimo livro para se levar numa pequena viagem de férias, para um fim de semana prolongado. Ele mostra com cuidado o mundo em que todos nós vivemos e faz com que se considere: esta é a maneira como realmente queremos viver nossas vidas? Será que vale a pena nos isolarmos do mundo à nossa volta? Vivermos rodeados só daqueles que se parecem conosco? Perder o contexto, nos exilarmos da nossa textura cultural, é uma maneira plausível de solucionarmos problemas sociais?
Recomendo o livro. Boa leitura!
Este livro ganhou o Prêmio Literário Clarín em 2005.
23/07/2008
Esta resenha apareceu primeiro em inglês na página: Living in the postcard