Paulo 23/11/2011
Todas as ecologias de Guattari
[Resenha publicada pela primeira vez na internet em 1999.]
O oceanógrafo francês Alain Bombard apareceu num programa de televisão com duas bacias de vidro: uma com a água poluída em que se desenvolvia, naturalmente, um polvo; outra com água marinha limpa. O polvo foi retirado do seu recanto de detritos e, diante de todos, introduzido na boa água. O animal, que antes se movia vivamente, entrou em segundos num colapso que o levou à morte. A narrativa desse incidente é apenas um dos momentos provocativos de As três ecologias (Papirus, 56 p.), assinado pelo ensaísta francês Felix Guattari (aqui sem Deleuze). Não se assustem os ecologistas atentos julgando o relato do episódio como argumento que atenue o impacto do discurso das complicações ambientais globais. Pelo contrário, Guattari menciona esse caso apenas para despertar do sonho do idealismo os cidadãos indignados (mas ineficientes): o mundo que temos é o que está aí. Os governos, as entidades, os indivíduos precisam compreender-se nessa atmosfera manchada de poeira atômica, AIDS, campos minados, extinção de espécies, miséria degradante, e espantar-se com sua própria capacidade de, como o polvo da televisão, adaptar-se a tamanha imundície.
Infelizmente, no plano formal, o autor insiste naquele jeito francês de escrever ensaio (sem combinar uma terminologia com o leitor e quase sem lhe dar exemplos dos princípios abstratos que aponta) pelo qual é necessário esforçar-se para entrar no seu universo de referências — o que acontece também em Sartre, Barthes, Baudrillard (mas não em Camus). É evidente que, por isso — sem o necessário amparo do acordo em relação aos termos —, é fácil ficar de fora de boa parte do livro. Mas há iluminações quando se entra nele. Guattari propõe uma "conscientização humana" (ainda que não aponte como isso se faria na prática) pela qual haveria uma preocupação com três ecologias: não só a convencional, do meio ambiente, que está na boa moda, mas também a da sociedade e a do indivíduo. O lugar e a importância dessas duas ecologias suplementares podem ser observadas na seguinte passagem conclusiva: "Os indivíduos devem se tornar a um só tempo solidários e cada vez mais diferentes" (p. 55). A essa "mágica" que congregaria em cada espírito o individualismo e o altruísmo, o autor chama heterogênese. Cada pessoa cumpriria o seu papel social (a conhecida cidadania) durante uma parte de sua vida (das 14h às 18h, por exemplo), e se retrairia em atividades de profunda singularização nos momentos de distensão política. Não é uma fórmula, é um ideal, e um ideal estimulante, que pode ser entendido, por analogia, como o desejo do artista que quer dar forma livre e descomprometida a seus impulsos criativos e ao mesmo tempo servir à sociedade que o resguarda. Sua heterogênese seria, portanto, o modo de manter saudáveis as ecologias mental e ambiental.
Se hoje não vivemos tal situação, isso se deve, para o ensaísta, ao que ele costuma chamar de Capitalismo Mundial Integrado, o capitalismo pós-industrial que concentrou seu poder na produção de signos e de subjetividade, por meio do controle sobre os meios de comunicação. E a subjetividade produzida por esse controle resultou num fenômeno que deveria ser paradoxal: os indivíduos tornam-se cada vez mais parecidos (pensam, comem, vestem as mesmas coisas), mas compõem massas sem coesão comunitária, em que há isolamento e competitividade. É claro que se trata do inverso de sua heterogênese. Mas ele escreveu sobre isso antes da chegada definitiva da globalização como tema de discussão política e social, e da explosão da internet, que parece viabilizar, pelo menos em princípio, a sua ecologia da subjetividade: jamais foi tão fácil e barato a tantos cidadãos "comuns" levar suas idéias a uma mídia de impacto — é o que acontece na rede, com sua massacrante e generalizada difusão de idéias as mais díspares e heterogêneas, "singulares", no dizer de nosso escritor. É a manifestação de subjetividades levando a um tipo de estreitamento social.
A importância da subjetividade também é destacada num momento de grande precisão do ensaio, em que é criticado o materialismo resistente da prática científica moderna. Esse questionamento ganha força com relação às ciências humanas, que, na racional loucura de se matematizarem positivamente, teriam deixado escapar as dimensões criativas da subjetividade. Goethe, Proust, Joyce, segundo ele, fizeram psicanálise melhor que Freud, Jung, Lacan. E os psicanalistas e artistas de hoje, agarrados às descobertas relativamente eficientes dessa nova ciência, resistem num freudismo que não passa de passadismo. Sem condenar o que ele chama de "fato freudiano", Guattari afirma que cabe à nova luta uma projeção para o futuro — futuro no sentido de novo —, por meio do reconhecimento dos processos de subjetivação. Ainda nesse sentido, ele considera significativo, por exemplo, que representantes das próprias ciências exatas tenham, em publicação recente, requisitado a introdução de certo "elemento narrativo" na física. O autor teria outros exemplos para mencionar, como a importância que vem sendo dada à investigação de elementos espirituais e do misterioso abismo por trás da consciência humana, não falando dos filósofos da ciência como Hilary Putnam e John Searle, que com sutil precisão vêm desenganando o encanto do materialismo positivo da ciência comum.
Em miúdos, Guattari pensa na criação de outros sistemas fortes de valor, que não o capital. É claro que existem outros valores em si mesmos, prezados simultaneamente por um sem-número de pessoas: o estético, o sentimental (aos quais ele alude), etc. Contudo surgem de forma ainda limitada no cotidiano da maioria das pessoas. Segundo ele, apenas com a gênese de uma criatividade geral entre os homens — sem prejuízo da ordem social — é que se poderá alcançar um futuro de qualidade em relação às três "ecologias" que concernem à vida humana.