Arsenio Meira 08/03/2014
O SILÊNCIO DE EMILY DICKINSON
Emily Dickinson virou um mito. Dá pra entender o fascínio que o "excêntrico" ou eremita desperta nas pessoas. Se a morbidez humana não tem limite, haja vista que basta suicidar-se para surgirem fatos e terços epopeicos sobre o poeta suicida (não foi este o caso de Emily), é intrigante o caso da Poeta norte-americana, cuja obra se confunde com a própria vida, cuja vida nos lega nada mais, nada menos, que sua experiência com a literatura. Se quase nada se sabe sobre a figura Emily Dickinson, se para o mundo de sua época sua vida passou em branco, foi na branca noite da escrita que ela viveu, como comprova este livro pergaminho, essencialmente solene para toda e qualquer ocasião luzente.
De fato, além do pouco que se sabe sobre sua vida pessoal, a própria escrita de Emily não nos permite fazer muitas aproximações. Decerto, a lírica e o gênio da escritora não pertencem à órbita do épico, humanitário, nacionalista ou público, mas, ao contrário: é lirismo visceralmente interiorizado, pessoal, intensamente concentrado, e quase secreto. O fato é que Emily nada publicou – jamais seria conhecida por seus contemporâneos pois que já era, desde sempre, uma contemporânea do futuro. Disso ela parecia saber, pois, ainda que alguma vez tivesse considerado tal possibilidade, certamente renunciara ao poder e à glória da notoriedade em favor de uma total dedicação à escrita quando inicia a correspondência com aquele que lhe aconselharia – temendo a recepção do público – adiar a publicação.
De fato, Emily Dickinson em vida, viu ou leu ou não viu e nem leu, apenas meia dúzia de poemas seus publicados esparsamente, por amigos, à revelia da escritora. O mundo literário de sua época não tomaria conhecimento de sua existência. Mas o mundo - não só o literário - raramente toma conhecimento em tempo hábil do que é essencial. Não obstante, ela escrevia. Trancada no quarto, ela escrevia. A partir dos 28 anos, passa a vestir-se exclusivamente de branco e a conversar com os amigos, nas raras ocasiões em que os recebia, somente através da porta entreaberta. Mas por que não publicaram Emily Dickinson? Por que motivos esse fenômeno poético passou toda a vida enviando sua produção poética a um tutor que, apesar de reconhecer a força daquela escrita não deixaria nunca de tentar corrigi-la? Por que escolher como interlocutor exatamente aquele que se colocaria entre ela e o público, e justamente por temer sua recepção? Porque ela sabia da inutilidade de se escrever para ser lida em qualquer circunstância, pois que, lendo, o público apenas lê a si próprio.
Emily parecia dominar tal intuição, e também, do perigo de se procurar o leitor no público, orientando-se para uma palavra que ninguém ouvirá. Por isso escreveu em silêncio, no movimento de uma expressão desapossada e desenraizada, que à pretensão de dizer tudo prefere nada dizer e, sempre que diz alguma coisa o faz para designar o nível abaixo do qual é preciso descer ainda, se se quer começar a falar. Assim, trancada em seu quarto, vestida de branco, essa mulher escrevia. Como se estivesse lutando contra uma palavra indefinida e incessante, sem começo nem fim. É contra o interesse público, contra a curiosidade distraída, instável, universal e onisciente, que o leitor acaba por ler, emergindo penosamente dessa primeira leitura à superfície. Foi assim que Emily dedicou toda a sua vida a uma produção poética incessante, à exigência de uma obra que se faria presente mesmo sem o encorajamento da aclamação pública. Pois se ela escrevia e não publicava nem uma vírgula, eis alguém que escreveu para afastar-se (inutilmente) da efêmera glória do renome literário. Somente uma necessidade vital de esculpir sua própria obra, em comovido silêncio, pôde fazer com que atravessasse impune ao naufrágio do tempo.
Emily Dickinson não se enganou com a pequena glória da literatura. Ela não desejou nada para si, pois sabia que, antes de possui-la, o escritor pertence à obra, mas o que lhe pertence é somente um livro, um amontoado mudo de palavras. Sabia que não seria esse amontoado de palavras estéreis o que lhe traria a Imortalidade; esteve todo o tempo “votada ao erro de um empreendimento necessariamente um pouco mais longo que a sua vida”. Ou seja: o Livro já existia, desde sempre. Não existia compreensão. Eis a nobreza e o legado de Emily Dickinson.