Pandora 17/06/2023“Quando se tem tempo, até a raiva se organiza.“ pág. 77
“As culpas, como as pessoas, começam a existir apenas quando alguém as percebe.” - pág. 136
Em Soreni, um vilarejo fictício na Sardenha dos anos 50, Maria Listru é a quarta filha de Anna Teresa, cujo marido havia morrido num acidente de trabalho, deixando a família já pobre na miséria. Maria é então dada a Bonaria Urrai, uma senhora solitária e calada, mas muito respeitada no povoado, cujo ofício principal é ser costureira. Porém, Bonaria exerce uma outra atividade importante: ela é uma acabadora, “aquela que faz o sofrimento cessar”.
Esse ofício de Bonaria, de facilitadora da morte, nunca é discutido abertamente, mas é sabido pelos adultos da cidade. Apesar de ser uma comunidade pequena, que poderíamos imaginar antiquada e cristã e que provavelmente condenaria a prática da senhora, Soreni é uma comunidade religiosa, mas que mantém alguns cultos pagãos de colheita e boa sorte, de respeito a tradições ligadas à natureza, aos ciclos de vida e morte.
Maria cresce sendo a filha d’alma (como eram chamadas as filhas adotivas) de Bonaria, mas a chama de tia como todos na cidade, embora se sinta muito mais próxima dela do que de sua mãe biológica. Ela é incentivada por Bonaria a estudar e aprender e vai muito bem na escola, apesar de na cidadezinha a maioria dos habitantes achar inútil o estudo para uma mulher. Mas a tia quer que a garota esteja preparada para um futuro, inclusive sabendo o italiano, já que ali só falam o sardo.
Com o passar dos anos, ela vê a tia saindo às vezes na calada da noite, mas não tem ideia do porquê e quando pergunta, nunca tem uma resposta satisfatória. Até que um dia, da pior forma possível, ela descobre a verdade. Criada com valores, mas também extremamente protegida, Maria não aceita que a verdade lhe tenha sido ocultada por tanto tempo e rompe com a mãe adotiva.
Nesta narrativa preciosa, a maternidade tem significados que vão além de mãe e filha, como quando, no confronto, Bonaria diz à Maria: “Meu ventre nunca se abriu (…). Eu também tinha meu papel a cumprir, e cumpri. (…) Eu fui a última mãe que alguns viram.” - págs. 110/111.
Mais tarde, Maria também tem a oportunidade de exercer um tipo de maternidade, mas fico por aqui porque já escrevi demais.
Notas: Não há consenso se as acabadoras realmente existiram ou são parte de uma lenda. Há um texto sobre isso, Série tradições culturais: mito “sa femmina accabbadora”, no blog Sardegna Terra Mia, para quem se interessar. Para quem lê em italiano, há um artigo bem detalhado chamado S’Accabadora, la portatrice di morte tra mito e realtà, no blog Oltre i Muri, que cita inclusive um museu em Luras, na Sardenha, que exibe, entre outras coisas, o que seriam trajes e objetos de uma acabadora.
Há um filme chamado L’accabadora, de 2015, dirigido por Enrico Pau, porém segundo li, não tem relação com o livro de Michela Murgia.